Nath @biscoito.esperto 28/11/2018Segurança ou liberdade?Se você leu o primeiro capítulo de Os Despossuídos, se sentiu um pouco confuso com a história e decidiu ler umas resenhas para ver se vale a pena continuar, eu te digo que vale. O primeiro capítulo desse livro pode parecer confuso, mas, a cada página lida, esse livro passa a fazer mais sentido e ganhar mais significado.
Le Guin é uma autora de várias camadas. Ao mesmo tempo em que este livro é uma obra de ficção científica com alienígenas e distopias/utopias, é principalmente uma analogia/sátira política. E, na minha opinião, a autora teceu uma trama política e econômica muito mais interessante do que alienígenas e naves espaciais.
O livro começa quando Shevek, um físico do planeta (na verdade, uma lua) Anarres, viaja para o planeta vizinho, Urras, para compartilhar sua fantástica pesquisa, que pode mudar a forma como a ciência enxerga a passagem e a percepção do tempo. Essa viagem do satélite natural ao planeta em questão, no entanto, é muito mais polêmica do que parece. No passado, todos os seres humanos viviam em Urras, até que uma rebelião anarquista começou. Depois de uma guerra, todos os “comunistas” literalmente se mudaram para a lua, Anarres. Quase nenhuma comunicação ocorreu entre esses planetas desde então, criando um clima de isolamento através dos séculos, algo que Shevek está prestes a quebrar com sua viagem. Mais polêmica que a viagem de Shevek, apenas a sua teoria: ele crê que o tempo está acontecendo todo ao mesmo tempo, simultaneamente.
O livro é contado em duas linhas do tempo. Os capítulos ímpares contam o presente, a história de Shevek indo a Urras para ensinar sobre sua visão científica do tempo. Os capítulos pares, por outro lado, contam sobre a vida de Shevek em Anarres, desde que ele era um jovem estudante até formar família e se tornar um cientista respeitado.
Os Despossuídos não é uma boa obra por ser um bom livro de ficção científica, com apetrechos tecnológicos ou mundos fantásticos. Esse livro é fenomenal porque apresenta uma crítica social baseada em dois mundos opostos economicamente, e a forma como esses sistemas se desenvolveram é um dos worldbuildings mais bem elaborados que eu já li.
Podemos dizer, a grosso modo, que Urras é uma sociedade capitalista, governada pelo dinheiro e pelo poder, enquanto Anarres é um modelo de comunismo anarquista, com recursos divididos igualmente entre todos, mas causando uma escassez mortal. O livro é narrado em terceira pessoa e se foca no ponto de vista de Shevek, que cresceu num planeta comunista, onde tudo é de todos, o poder é inexistente e os bens são do povo. Vê-lo inserido num mundo capitalista selvagem, quase igual ao nosso, é uma das coisas mais interessantes que eu já li.
Quando lemos sobre sociedades utópicas com base econômica comunista/socialista, é comum que pensemos que a ideia do autor é ingênua e idealista, e que tal sistema jamais funcionaria. No entanto, lendo sobre o sistema econômico e sócio-político de Anarres, criado por Ursula, é impossível não notar que esse é um mundo extremamente verossímil, que poderia existir na vida real, com todas as suas vantagens e defeitos – assim como o capitalismo. Ursula não cria uma sociedade de pessoas perfeitas e abnegadas, mas usa os humanos que conhecemos, que são egoístas e possessivos, de forma a construir um mundo onde essas qualidades psicológicas são combatidas em todas as camadas da sociedade, da mesma forma que o capitalismo combate a comodidade.
Mais do que uma mera apresentação de um mundo imaginário ou uma crítica política, o livro trata da questão da liberdade. Afinal, será que somos livres? Se não somos, alguém é livre? Se ninguém é livre, é possível ser livre, afinal?
Uma metáfora que desenvolvi durante a leitura, para decidir com que sistema eu mais simpatizava, foi pensar assim: será que eu prefiro ter a certeza de que sempre terei comida, segurança e abrigo, em troca de não poder escolher que comida comerei ou que trabalho terei; ou será que prefiro a perspectiva de poder passar fome, sofrer violência e viver nas ruas, mas poder escolher o que faço nos meus próprios termos? Se você prefere a primeira opção, você simpatiza com Anarres. Se escolheu a segunda, simpatiza com Urras. Mas nada é preto no branco dessa maneira, e Os Despossuídos analisa exaustivamente esse ponto de vista. Numa sociedade brasileira que grita “comunismo!” ao ver qualquer pessoa defendendo direitos humanos, esse livro pode ser um choque de realidade.
Como se não bastasse, este livro também lida com várias questões filosóficas, morais e científicas. A autora debate muito sobre a igualdade de gênero, a liberdade de expressão, a hierarquia de poder na sociedade humana e sobre como a percepção do tempo e do universo molda nossas ações. Mas esses assuntos surgem de forma natural no texto, criando um livro rico em conteúdo, além de ser uma obra muito divertida de se ler. Afinal de contas, ainda é um livro de ficção científica com alienígenas.
Recomendo demais!
Dou destaque para alguns trechos do livro que podem cativar o leitor indeciso: quando Shevek debate sobre igualdade de gênero (página 26), quando Shevek explica sua teoria numa festa em Urras (página 219) e o debate sobre a necessidade do sofrimento (página 68).
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