Toni 21/10/2021
As Aparições por um olhar lírico.
A cada obra um novo desafio, cada roteiro estampa a sua marca de originalidade, em cada palavra ou frase escrita um caminho ou motivo para redescobrir, pensar e, não poucas as vezes, emocionar, ao mesmo tempo em que cada personagem elaborada tem a sua própria vestimenta, aquilo que a faz única. Esse é José Luís Peixoto, autor de obras nas quais tenho viajado e, quanto mais intrigante sua "razão de subida" mais me debruço no seu "nível de cruzeiro".
Por uma questão de espaço mesmo entre tantas coisas a serem exploradas no livro, "em teu ventre", vou me ater a um único aspecto da obra que, creio eu, foi fundamental pra fazer desse livro um dos melhores do autor, se não o melhor, sobretudo no que diz respeito à forma com que o livro foi escrito. Um claro exemplo disso está nos múltiplos narradores. Sim, no plural, porque além daquele narrador clássico ( muito imaginativo), outros narradores ajudam a dar solidez a uma teia intrigante de conexões que compõem o corpo da narrativa, rica em elementos históricos, mas também deliciosamente literária. O primeiro que se encarrega da "decolagem", Iogo nos primeiros versos da narrativa, estruturados como se fossem versículos bíblicos, fazendo jus ao caráter lírico sempre tão presentes nas obras do autor, é Deus com seus ensinamentos firmes e por vezes emotivos, o que sugere a força masculina e, ao mesmo tempo, a intensidade feminina. Seria Deus ou a Mãe Maria?
"Tudo começa com a esperança.
[...] antes da existência está a esperança.
Sou eu quem diz.
[...] Todos os seres, principalmente
os que possuem pele,
têm o direito inequívoco
a alguma esperança. " p.09
Em seguida entra em ação o narrador clássico, responsável pela abordagem de cadenciamento central da narrativa e que sofre interferência pontuais de outros narradores representados aqui por Maria, que fazendo por vezes a atribuição de mãe do autor, traz alguns questionamentos sobre as aflições e angústias de ser mãe,
cujas intervenções aparecem sempre entre parênteses, despertando em Maria o espírito de todas as mães do mundo de hoje, todas as Marias, mãe de Lúcia, de Francisco, de Jacinta, de Jesus, do autor, enfim.
"(À hora do almoço, só precisavas de ocupar o teu lugar à mesa. Mesmo assim, ainda te achavas no direito de me acusar de sal a mais ou a menos. Nunca valorizaste o meu cansaço, porque sempre ignoraste o meu trabalho e o meu transtorno.)" p.44
E finalmente, Lúcia surge como narradora quando sua voz intermedeia a narrativa demarcando-lhe assim um ar de impessoalidade, mas principalmente aquela personagem que desperta todos os sentimentos que implicam a maternidade e que são refetidos na obra.
"Os segredos passam por qualquer fresta, são mais fluidos do que a água, mais informes do que o ar. Podemos fazer tudo para guardar um segredo, mas ele acaba por encontrar caminho para se esvair. "
Quem se sentir atraído pela leitura envolto de curiosidade de ver as narrativas sobre as Aparições, não leia!, pois a decepção será certa, o autor apenas as sugere a partir de circunstâncias supostas e as personagens envolvidas. E creio que essa escolha se justifica, no sentido de não levantar qualquer bandeira de fé, tendo em vista que o valor da obra estar justamente na dosagem desses dois opostos, a verdade e a mentira, ambas servem de esteio pra elaboração dessa obra grandiosa.
Lembrando que somos um mundo em cada um, aquilo que é fenomenal pra mim, pode ser raso pra outros, porém o que seria do pássaro se ele não arriscasse voar? Boa leitura!