Soares.Julio 06/10/2020
"Há um país dissimulado, portanto, escondido embaixo da sociedade que mostramos ao mundo"
Providence volume 1, Editora Panini Comics, 176 páginas, história publicada em três volumes, preço sugerido: RS55,00. Escrito por Alan Moore e ilustrado por Jacen Burrows.
Providence conta a história do jornalista e escritor Robert Black na cidade de Nova York, que após entrevistar um homem que teria tecido um ensaio respeitado sobre um livro chamado Sous Le Monde, que teria ocasionado suicídios entre os leitores e que teria servido de inspiração para um outro livro chamado O Rei de Amarelo, decidiu partir em uma jornada para coletar material para a escrita de seu livro que “chegue ao coração do país e de seu tempo” através de uma busca pelo misterioso Kitab, citado na entrevista, um livro alquímico que teria ligação com uma ordem chamada Stella Sapiente. Uma jornada que o levará a Nova Inglaterra, mas especificamente numa região que seria conhecida como Condado Lovecraft.
Já esclarecendo algo bastante questionado, não é preciso conhecer extensamente a obra de Lovecraft para apreciar Providence, embora conhecer lhe ponha a frente de certas questões. O primeiro volume abarca quatro edições, cada qual fechada em si, mas com um gancho que o levará ao seguinte e cada capítulo segue ao mínimo um conto especifico de Lovecraft (Ar Frio, O Horror em Red Hook, A Sombra de Innsmouth e Horror em Dunwich), mas como foi dito, não é preciso conhecer os quatro contos, pois a história segue como base principal a busca de Black e o horror sugerido. Cada capítulo terá uma adição de novos personagens e novos locais, perpetrando o clima de mistério e conspiração ao cético Black enquanto nós olhamos com olhos mais desconfiados, além de termos acesso ao diário de Robert Black, no qual ele escreverá sobre suas experiências, seus sonhos e ideias sobre o livro.
Alan Moore tinha um grande desafio em escrever Providence: Criar uma obra que pudesse se sustentar sozinho, sem pedir que o leitor tivesse conhecimento das obras de H.P. Lovecraft e que não tivesse lido Neonomicon, uma obra antecessora que se passa no mesmo universo. E conseguiu. A narrativa de Providence começa paulatinamente após Black, trabalhando no caso do misterioso livro Sous Le Monde, entrevistar o dr. Alvarez. Black é um homem gay e judeu numa época onde a homofobia e o antissemitismo eram mais agravantes do que no tempo atual (Providence se passa em meados de 1919), o que o faz escolher esconder suas raízes, assim como dr. Alvarez que não só possui seus segredos, como tem uma visão aguçada de como a sociedade se esconde através de fachada, um grande véu que cobre o país, uma visão que fisga Black, que estava há um tempo em busca de um tema para seu livro.
Dentro de Sous Le Monde, havia menção a um livro alquímico escrito no século oitavo chamado Kitab Al-Hikman Al Najmyya que havia chamado a atenção do dr, Alvarez, que por sua vez chama a atenção de Robert Black. Black se esconde através da figura do homem clássico, esconde sua sexualidade e sua religião, um análogo constante dentro da obra, dentro da temática. Em sua jornada, Black é confrontado com quem ele realmente é assim com o que ele possa vir a ser, e sua noção de realidade é posto a prova. Por diversos momentos Black vislumbra o que há por trás do véu da normalidade, sempre se ancorando em resoluções simplistas, à medida que nós leitores, olhamos de forma mais cínica. À medida que Black adentra nesse universo, vemos homens e mulheres se portando frente ao protagonista com uma mascara social, iludindo o homem que quer acreditar naquilo, mas nós vemos por trás disso, vemos o tom fantástico, e com isso, nos deleitamos com diversas ligações entre os casos como uma boa obra de mistério tem que ser.
Comprei Providence após a reedição do primeiro volume pela Panini e não me arrependi por um segundo. Comprei por conta do fascínio por Alan Moore e pela mitologia de H.P. Lovecraft e me surpreendi com o quanto ela me fisgou por si só. Embora tenha lido dois contos que serviram de base para dois capítulos, outro eu li após a leitura de Providence e outro ainda não li, essa bagagem, ou falta dela, não foi tão necessário. O texto do Moore é primoroso; ele consegue amarrar as pontas que deixa durante a história, até pedindo uma leitura atenta ou uma segunda leitura. Aqui Moore trabalha temas caros a ele como psicogeografia, ocultismo e sexualidade. Seu texto também não fica imune de tecer certas criticas ao pensamento retrogrado de Lovecraft, mas é feito de forma bem encaixada, a ponto de passar desapercebido por olhos mais desatentos. Xenofobia e elitismos são encaixado com um futuro tema genocida e injustiças; nada parece de graça e são correlações do tipo que me fizeram esquecer do externo e focar nessa obra que possivelmente pode ser lida além do que li e que faz querer ler de novo daqui a uns anos, afora a forma como o mago de Northampton nos sugere um mundo diferente abaixo dos nossos pés ou além das barreiras dos sonhos, seja socialmente ou individualmente, isso é subjetivo.
A arte de Jacen Burrows é simplista e limpa e bastante competente. A movimentação dos quadros é por vezes cinematográfica, que entre o zoom e planos abertos, os enquadramentos são bem detalhados, onde os cenários são bem compostos, bem desenhados, sendo usados fotos de referencia para ruas, prédios e monumentos da época, para dar maior realismo, dando toda a cara de uma história que se passa no começo do século passado. O “comum” do traço de Burrows é perfeito para o contraste do “incomum” da obra, que se fosse uma arte mais estilizada, essa barreira seria mais desconexa, então a arte de Jacen Burrows é perfeita para esse projeto.
O primeiro volume de Providence é uma ótima leitura pra todos que gostam de uma boa história de horror e mistério. É o começo de uma história que se desenvolve em uma boa progressão, que vai nos colocando numa rota cada vez mais sombria e obscura. Como obra única, o final fica com impressão de que estamos apenas arranhando o mistério, mas não chega a ser algo frustrante, já que o final deixa um vestígio do quão grande pode ser o que está por trás de tudo e nos faz questionar até onde vai a influencia Deles. Um primeiro volume com a sensação de completude no que se refere a temática, mas com uma sombra de algo mais. É uma obra recomendadíssima, com um texto com múltiplas camadas, uma arte bem detalhada (com direito a diversas capas extras no final da edição) e um mistério lovecraftiano digno das boas histórias de mistério.