Renato 24/02/2018
A extremidade que sangra
'O último grito' (The bleeding edge) é a mais recente esquizofrenia bipolar de Thomas Pynchon. Este americano nascido numa era pré-histórica, tecnologicamente falando (1937), escreve com a vitalidade de um garoto viciado em Call of Duty, com a eloquência e a propriedade de um hacker discorrendo sobre deep web e Metal Gear Solid como se fosse um menino quatro vezes mais novo.
Mas ele escreve com uma fluência que somente o polegar não consegue acompanhar. Seu estilo desafia. Dispersa. O leitor que espera uma estória, um enredo claramente delineado, mesmo que não linear, pode se perder no grande número de situações e personagens que entram e saem sem continuidade, aparentemente desconexos. Estilo radical em outros livros de Pynchon, mais aproximável em 'O último grito'. Nada que impeça o prazer da leitura. Uma questão de expectativa, mais do que dificuldade. Ao se perceber qual é a lógica de Pynchon, a nossa compreensão parece deslizar sem a obrigação de decifrar enigmas ou procurar respostas para as questões que surgem, como se tudo tivesse que ter uma lógica de abertura e fechamento.
É como se analisássemos uma imag em. Não se trata de uma pintura de natureza morta, de Jean-Siméon Chardin. Ou o imenso mundo natural, lógico e visível de Caspar David Friedrich. Nem o retrato da Revolução Francesa, nem a sensação de dispersão, vagando por pinceladas mais abstratas as nuances de Monet. Ou as cores de Van Gogh. Pynchon é ainda mais radical que o tempo que se dissolve, de Dali. Se pensarmos em imagem, mergulhar em Pynchon é como ler 'As Tentações de Santo Antão', de Hieronymus Bosch. Uma polifonia de caracteres bizarros, significativos, evocando o caos reinante no mundo organizado artificialmente pela arte e ciência dos nossos sentidos organizados. Cada minúsculo pedaço da imagem é um universo de realidade, conversando fora de uma sequência claramente lógica, mas claramente interligadas, dando uma clara sensação do propósito da imagem, detalhando de forma inequívoca o verdadeiro sentido da realidade que circunda o retrato do pintor. A leitura de Pynchon tem que ser a apreciação de uma grande polifonia barroca. Bem humorada e sarcástica em cada linha. Pintada através mil personagens aparentemente incompletos, ele constrói uma paisagem inteira, com profundidade do detalhe.
Em 'Contra o dia', um livro mais labiríntico de Pynchon, os personagens somem e as páginas caminham sem que o leitor perceba claramente o caminho, gerando uma perda de atenção para muitos. Em 'O último grito' há um enredo facilmente perceptível por trás deste divertido caos. A investigação da empresa hashslingrz. Nenhuma perseguição de carros ou capangas sensualmente malvados. Na realidade o que entretem são as situações e personagens, as citações enciclopedicas de filmes, games e programas. Esta profusão de citações inteligentes habilmente amaradas faz com que o livro divirta e interesse. Pynchon faz uma imersão quase fantástica no mundo tecnologico. O mundo da internet, da tecnologia, seus financiadores e suas fraudes. Ao redor de Maxine, personagem principal, fiscal de fraudes, surgem e desaparecem personagens significativos, sutuações transitórias retratando este mundo da internet, dos games, do livre mercado. Aparecem Gabriel Ice, milionário, desenvolvedores de aplicativos, investidores anjos e oportunistas circulando em torno de marcas, dinheiro, e fórmulas de promover o hedonismo rentável e enganar as autoridades em busca de mais dinheiro livre de impostos.
Sua polifonia não é aleatória, ela tem posição marcada, criticando explicitamente a ilusão do mercado livre e da aparente liberdade de escolha e de navegação da internet. Mas Pynchon atira para todos os lados, tanto à direita como à esquerda do cursor. Em especialmente satiriza as utopias de ambos os lados. Em 'O ultimo grito' as ilusões do mercado livre, a utopia hoje prevalente, aparecem com maior pujança. Pynchon descreve fraudes, hipocrisias e crimes feitos com suficiente dose de endorfina para satisfazerem os instintos hedonistas de uma classe média intelectualizada, que trocou o debate que dominou o pós-segunda guerra pelos prazeres mais carnais, música, games, e mais recentemente comida. Cultura que hoje tem o estômago como órgão de compreensão mais avançado. Sua personagem Maxine vagueia por um mundo que não se autoregula, que se equilibra precariamente numa batalha canibal contínua, negócios, juros e dividendos, sem nenhuma pena, pois as pessoas não existem, somente sua representação num aplicativo de vida virtual, o deeparcher. Quando o desafio da leitura do princípio passa, o leitor navega num universo de sarcasmo que é um espelho do mundo aqui de fora.
Aos poucos sua polifonia se transforma em extensão e o enredo se torna mais linear. Surge a paranoia e seu sarcasmo sobre uma teoria da conspiração que parece ao mesmo tempo concreta e irreal.
Este é Pynchon, gênio e verborreico como alguns de seus seguidores, Roberto Bolaño e David Foster Wallace. Sua técnica não segue nenhuma regra de boas maneiras literárias. Da mesma forma, sua tradução é difícil. Ele usa neologismos e girias criadas por ele mesmo, fusões de nomes que são virtualmente intraduzíveis. Pynchon é a linguagem, a citação pontual muito frequente no universo pop. É Caetano Veloso citando Tim Maia, aparentemente fora do contexto. É o inglês Mark E. Smith criando personagens politicamente incorretos em duas frases de uma canção. É o cinema da descontinuidade, as citações de Jim Jarmusch e até mesmo o sarcasmo de Monty Python. Lamentavelmente para poucos, somente para os de espírito aberto que estão dispostos a um longo período de leitura sem compromisso com a ?estória? ou com uma conclusão moral.
Alguns trechos
"De vez em quando um órgão arrecadador de impostos, como o Departamento Financeiro da prefeitura de Nova York, contrata uma auditoria externa, principalmente quando o prefeito é republicano, já que seu partido aceita a curiosa teoria de que o setor privado é sempre bom e o público é sempre mau. Maxine chega no escritório a tempo de receber um telefonema de Axel Quigley, da John Street, com as últimas a respeito de mais um caso tristíssimo de sonegação do imposto sobre a venda, levando a coisa para o lado pessoal como sempre, muito embora o caso já esteja se desenrolando há algum tempo. Os informantes de Axel costumam ser empregados insatisfeitos, aliás ele e Maxine se conheceram numa Oficina de Empregados Insatisfeitos coordenada pelo professor Lavoof, geralmente reconhecido como o padrinho da Teoria da Insatisfação no Trabalho e criador do influente Programa de Simulação de Insatisfação Crônica e Outras Situações Estressantes, conhecido também como PSICOSE ."
"Começando com atividades subalternas de distribuir dinheiro, promovido para vigilância secreta e espionagem comercial, Windust a certa altura começou a desempenhar papéis sinistros, talvez já no momento em que atravessou os Andes e foi para a Argentina. Aí as responsabilidades de seu cargo começaram a incluir ?técnicas intensificadas de interrogatório? e ?relocalização involuntária de pessoas?. Mesmo conhecendo pouco a história da Argentina no período, Maxine consegue traduzir muito bem essas expressões. Por volta de 1990, como membro de um grupo de veteranos norte-americanos da Guerra Suja, todos peritos em questões argentinas, que ficaram no país para dar assessoria aos testas de ferro do FMI que subiram ao poder logo em seguida, Windust foi um dos fundadores de um think tank em Washington chamado Treinar a América do Norte para a Globalização de Oportunidades ( TANGO ). Há trinta anos atua como professor visitante em diversas instituições, inclusive a infame Escola das Américas. Vive cercado pela costumeira gangue de acólitos mais jovens, embora aparentemente seja contrário a cultos de personalidade por uma questão de princípios."
"Há anos vinha pesquisando métodos novos e criativos de evitar a violência, métodos que quase sempre tinham a ver com comprar as pessoas. As que perseguiam celebridades imperiais eram contratadas como guarda-costas, os jornalistas com tendências abelhudas eram nomeados ?analistas? e instalados em mesas do serviço de informações do Estado."