O último grito

O último grito Thomas Pynchon




Resenhas - O Último Grito


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Oz 22/12/2017

Uma grande parte da vida que nós, indivíduos do século XXI, levamos pode ser traduzida em bits, meras sequências de zeros e uns que nos definem e vão deixando nossas pegadas no tempo pós-analógico. Pois bem, neste próprio instante, você está imerso nesse mundo digital, navegando pela World Wide Web, lendo essa resenha – que também não passa de uma sequência binária bem ordenada – e consumindo uma avalanche de informações que provavelmente saíram da caixa da cultura pop contemporânea, patrocinada e promovida por alguns interesses financeiros empresariais bem definidos. Enquanto isso, as relações pessoais vão caminhando ali, ao largo, esmorecendo pouco a pouco, como se estivesse em outro plano mundano.

E o que isso tem a ver com “O Último Grito”?

Tudo. Nesse livro de Thomas Pynchon, acompanhamos a fiscal-detetive Maxine em sua jornada para descobrir os “podres” por trás de uma grande empresa de tecnologia, comandada pelo bilionário Gabriel Ice, um geek que viu sua fortuna crescer em escala geométrica. Somos inseridos no universo da Nova York pré-atentado de 11 de setembro de 2001 e arremessados em uma história de transferências ilegais, jovens prodígios da informática, conspiração política, crimes e, claro, uma pitada de paranoia, como não poderia deixar de ser em um romance pynchoniano. Além disso, como já é de costume nas obras do autor, somos apresentados a uma lista gigantesca de personagens, cada um mais caricato do que o outro.

Em meio a essa confusão de intrigas e rostos, vemos Maxine se aprofundar em um universo à parte, passando a interagir com capangas russos, agentes do Mossad, investidores misteriosos e uma série de personagens que exercem atividades que, para dizer o mínimo, parecem muito suspeitas e ilícitas. Além da investigação, Maxine começa a dedicar parte do seu tempo a navegar no Deep Archer, uma espécie de programa desenvolvido na deep web que simula uma realidade virtual para que as pessoas habitem e interajam através de seus avatares. Ao longo do livro, esse simulador vai se tornando cada vez mais desenvolvido, de forma que, em certo momento, Maxine passa a se perguntar se ela está no mundo real ou no digital, e se até mesmo é possível viver eternamente dentro de um avatar em caso de morte.

Esse é apenas um lado da história. Uma leitura mais desatenta poderia relegar ao segundo plano um outro lado fundamental nesse livro de Pynchon: a importância e o detrimento das relações pessoais. E aqui, talvez o exemplo mais evidente do tema seja a própria família de Maxine. Ela tem dois filhos e um ex-marido, Horst, que, logo no começo do livro, acaba indo morar de volta com ela e os meninos. Maxine e Horst revezam os dias para levar as crianças na escola, mas a atribulada vida da protagonista chega até a fazer com que ela se esqueça de que é seu dia de levar as crianças. Seu relacionamento com Horst, obviamente, também não foi (é) dos mais saudáveis. Sua melhor amiga, inclusive, acaba por ficar com alguns homens com quem Maxine se relaciona. A interação que Maxine tem com seus pais, apesar de amistosa, parece ser um tanto fria, pois ela se refere a eles sempre pelos nomes próprios. Como se não bastasse, ela tem uma relação conflituosa com sua irmã, cujo marido acaba indo trabalhar na empresa de Ice e se torna também um suspeito ou, ao menos, alguém a mais em sua agenda investigativa. Diante desse cenário, chegamos ao fatídico dia do atentado terroristas, que, no final das contas, pode servir como uma metáfora em escala global de como os laços entre as pessoas estão cada vez mais frágeis mediante interesses espúrios, e que não estamos seguros em lugar nenhum. Mas Pynchon não iria deixar tamanho evento passar na nossa frente sem explorar ao máximo sua capacidade de servir como combustível para teorias da conspiração, amarrando-o às suspeitas que vão surgindo durante toda trama.

Em resumo, pode-se dizer que “O Último Grito” é sim um livro com um forte tom de suspense investigativo em que Pynchon tece uma trama paradoxalmente confusa e consistente, em um universo cujo funcionamento é altamente ditado pelos imperativos das grandes corporações, pelo desenvolvimento (e decadência) da tecnologia e pela onipresença da cultura pop americana. Contudo, lê-lo apenas sob essa perspectiva é deixar escapar as nuances críticas que o autor nos apresenta página após página, principalmente no que se refere à decadência sensível das relações entre as pessoas, que acabam se tornando reféns ou objetos de manipulação de interesses menos imprescindíveis. O pior é que é praticamente impossível de negar que esse é um reflexo bem fidedigno dos nossos tempos. E, no final, fica sempre a pergunta em nossa cabeça: o quanto disso é nossa própria culpa? Eu não sei, mas as vezes é melhor mesmo fazer um logoff.
Jaque Vieira 29/12/2017minha estante
Gostei da resenha. Vou adicionar O Último Grito a minha lista de leituras. =)


Ladyce 07/02/2022minha estante
Excelente resenha.


Ladyce 07/02/2022minha estante
Excelente resenha.




Renato 24/02/2018

A extremidade que sangra
'O último grito' (The bleeding edge) é a mais recente esquizofrenia bipolar de Thomas Pynchon. Este americano nascido numa era pré-histórica, tecnologicamente falando (1937), escreve com a vitalidade de um garoto viciado em Call of Duty, com a eloquência e a propriedade de um hacker discorrendo sobre deep web e Metal Gear Solid como se fosse um menino quatro vezes mais novo.

Mas ele escreve com uma fluência que somente o polegar não consegue acompanhar. Seu estilo desafia. Dispersa. O leitor que espera uma estória, um enredo claramente delineado, mesmo que não linear, pode se perder no grande número de situações e personagens que entram e saem sem continuidade, aparentemente desconexos. Estilo radical em outros livros de Pynchon, mais aproximável em 'O último grito'. Nada que impeça o prazer da leitura. Uma questão de expectativa, mais do que dificuldade. Ao se perceber qual é a lógica de Pynchon, a nossa compreensão parece deslizar sem a obrigação de decifrar enigmas ou procurar respostas para as questões que surgem, como se tudo tivesse que ter uma lógica de abertura e fechamento.

É como se analisássemos uma imag em. Não se trata de uma pintura de natureza morta, de Jean-Siméon Chardin. Ou o imenso mundo natural, lógico e visível de Caspar David Friedrich. Nem o retrato da Revolução Francesa, nem a sensação de dispersão, vagando por pinceladas mais abstratas as nuances de Monet. Ou as cores de Van Gogh. Pynchon é ainda mais radical que o tempo que se dissolve, de Dali. Se pensarmos em imagem, mergulhar em Pynchon é como ler 'As Tentações de Santo Antão', de Hieronymus Bosch. Uma polifonia de caracteres bizarros, significativos, evocando o caos reinante no mundo organizado artificialmente pela arte e ciência dos nossos sentidos organizados. Cada minúsculo pedaço da imagem é um universo de realidade, conversando fora de uma sequência claramente lógica, mas claramente interligadas, dando uma clara sensação do propósito da imagem, detalhando de forma inequívoca o verdadeiro sentido da realidade que circunda o retrato do pintor. A leitura de Pynchon tem que ser a apreciação de uma grande polifonia barroca. Bem humorada e sarcástica em cada linha. Pintada através mil personagens aparentemente incompletos, ele constrói uma paisagem inteira, com profundidade do detalhe.

Em 'Contra o dia', um livro mais labiríntico de Pynchon, os personagens somem e as páginas caminham sem que o leitor perceba claramente o caminho, gerando uma perda de atenção para muitos. Em 'O último grito' há um enredo facilmente perceptível por trás deste divertido caos. A investigação da empresa hashslingrz. Nenhuma perseguição de carros ou capangas sensualmente malvados. Na realidade o que entretem são as situações e personagens, as citações enciclopedicas de filmes, games e programas. Esta profusão de citações inteligentes habilmente amaradas faz com que o livro divirta e interesse. Pynchon faz uma imersão quase fantástica no mundo tecnologico. O mundo da internet, da tecnologia, seus financiadores e suas fraudes. Ao redor de Maxine, personagem principal, fiscal de fraudes, surgem e desaparecem personagens significativos, sutuações transitórias retratando este mundo da internet, dos games, do livre mercado. Aparecem Gabriel Ice, milionário, desenvolvedores de aplicativos, investidores anjos e oportunistas circulando em torno de marcas, dinheiro, e fórmulas de promover o hedonismo rentável e enganar as autoridades em busca de mais dinheiro livre de impostos.

Sua polifonia não é aleatória, ela tem posição marcada, criticando explicitamente a ilusão do mercado livre e da aparente liberdade de escolha e de navegação da internet. Mas Pynchon atira para todos os lados, tanto à direita como à esquerda do cursor. Em especialmente satiriza as utopias de ambos os lados. Em 'O ultimo grito' as ilusões do mercado livre, a utopia hoje prevalente, aparecem com maior pujança. Pynchon descreve fraudes, hipocrisias e crimes feitos com suficiente dose de endorfina para satisfazerem os instintos hedonistas de uma classe média intelectualizada, que trocou o debate que dominou o pós-segunda guerra pelos prazeres mais carnais, música, games, e mais recentemente comida. Cultura que hoje tem o estômago como órgão de compreensão mais avançado. Sua personagem Maxine vagueia por um mundo que não se autoregula, que se equilibra precariamente numa batalha canibal contínua, negócios, juros e dividendos, sem nenhuma pena, pois as pessoas não existem, somente sua representação num aplicativo de vida virtual, o deeparcher. Quando o desafio da leitura do princípio passa, o leitor navega num universo de sarcasmo que é um espelho do mundo aqui de fora.

Aos poucos sua polifonia se transforma em extensão e o enredo se torna mais linear. Surge a paranoia e seu sarcasmo sobre uma teoria da conspiração que parece ao mesmo tempo concreta e irreal.

Este é Pynchon, gênio e verborreico como alguns de seus seguidores, Roberto Bolaño e David Foster Wallace. Sua técnica não segue nenhuma regra de boas maneiras literárias. Da mesma forma, sua tradução é difícil. Ele usa neologismos e girias criadas por ele mesmo, fusões de nomes que são virtualmente intraduzíveis. Pynchon é a linguagem, a citação pontual muito frequente no universo pop. É Caetano Veloso citando Tim Maia, aparentemente fora do contexto. É o inglês Mark E. Smith criando personagens politicamente incorretos em duas frases de uma canção. É o cinema da descontinuidade, as citações de Jim Jarmusch e até mesmo o sarcasmo de Monty Python. Lamentavelmente para poucos, somente para os de espírito aberto que estão dispostos a um longo período de leitura sem compromisso com a ?estória? ou com uma conclusão moral.

Alguns trechos

"De vez em quando um órgão arrecadador de impostos, como o Departamento Financeiro da prefeitura de Nova York, contrata uma auditoria externa, principalmente quando o prefeito é republicano, já que seu partido aceita a curiosa teoria de que o setor privado é sempre bom e o público é sempre mau. Maxine chega no escritório a tempo de receber um telefonema de Axel Quigley, da John Street, com as últimas a respeito de mais um caso tristíssimo de sonegação do imposto sobre a venda, levando a coisa para o lado pessoal como sempre, muito embora o caso já esteja se desenrolando há algum tempo. Os informantes de Axel costumam ser empregados insatisfeitos, aliás ele e Maxine se conheceram numa Oficina de Empregados Insatisfeitos coor­denada pelo professor Lavoof, geralmente reconhecido como o padrinho da Teoria da Insatisfação no Trabalho e criador do influente Programa de Simulação de Insatisfação Crônica e Outras Situações Estressantes, conhecido também como PSICOSE ."

"Começando com atividades subalternas de distribuir dinheiro, promovido para vigilância secreta e espionagem comercial, Windust a certa altura começou a desempenhar papéis sinistros, talvez já no momento em que atravessou os Andes e foi para a Argentina. Aí as responsabilidades de seu cargo começaram a incluir ?técnicas intensificadas de interrogatório? e ?relocalização involuntária de pessoas?. Mesmo conhecendo pouco a história da Argentina no período, Maxine consegue traduzir muito bem essas expressões. Por volta de 1990, como membro de um grupo de veteranos norte-americanos da Guerra Suja, todos peritos em questões argentinas, que ficaram no país para dar assessoria aos testas de ferro do FMI que subiram ao poder logo em seguida, Windust foi um dos fundadores de um think tank em Washington chamado Treinar a América do Norte para a Globalização de Oportunidades ( TANGO ). Há trinta anos atua como professor visitante em diversas instituições, inclusive a infame Escola das Américas. Vive cercado pela costumeira gangue de acólitos mais jovens, embora aparentemente seja contrário a cultos de personalidade por uma questão de princípios."

"Há anos vinha pesquisando métodos novos e criativos de evitar a violência, métodos que quase sempre tinham a ver com comprar as pessoas. As que perseguiam celebridades imperiais eram contratadas como guarda-costas, os jornalistas com tendências abelhudas eram nomeados ?analistas? e instalados em mesas do serviço de informações do Estado."
Daniel Assunção 24/02/2018minha estante
Opa, que satisfação de resenha! Nem terminei por falta de tempo mas já já volto.


Márcio_MX 25/02/2018minha estante
Resenha perfeita, estou lendo "Arco-íris" e todos os elementos que você citou, assim como o estilo literário estão presentes. Ler Pynchon é entrar por uma porta quântica da literatura.


Renato 02/03/2018minha estante
Pynchon não é fácil Ele te força a sair do foco a todo momento, e manter a concentração é difícil. Mas vale a pena, no final.




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