Leila de Carvalho e Gonçalves 05/03/2020
Metafísica Sombria
Vencedor de dois importantes prêmios literários, o Atukagawa e o Tanizaki, Shusaku End? (1923-1996) é considerado um dos mais importantes romancistas japoneses do século XX e sua obra distingue-se por apresentar a perspectiva de um católico num país onde essa religião é minoria: atualmente, corresponde a menos de 1% da população.
Lançado em 1986, Escândalo é seu penúltimo romance e também o mais audacioso. Seu protagonista é Suguro, um renomado escritor, cuja ilibada conduta está por um fio, desde que uma mulher desconhecida acusou-o de frequentar o mal afamado Bairro de Shinjuku, ao que tudo indica, lugares ligados a práticas sadomasoquistas. Visitas que ele nega veemente e são bastante constrangedoras para quem sempre norteou a vida pela religião, disciplina e moralidade, aliás, a mesma religião, disciplina e moralidade que sempre foi peculiar a End?. Curiosamente, há vários traços em comum entre eles, por exemplo: estão com 65 anos, lutaram contra a tuberculose na juventude e possuem casamentos duradouros.
Pautada pelo mistério e o suspense, a narrativa percorre a decadente Tóquio, na década de oitenta, em companhia de Suguro, que está à procura de um sósia que pode destruir sua notoriedade, imbuído ou não de algum motivo. Entretanto, ele precisa agir com cautela, pois Kobari, um repórter e escritor fracassado, também está investigando o caso e pretende incriminá-lo a qualquer custo e tem um bom motivo para isso: vingar-se de quem inveja por meio de uma reportagem que lhe trará fama e dinheiro.
Escândalo comprova ser um bom thriller psicológico, pois até seu desfecho é impossível saber se existe um outro Suguro e havendo, quem ele pode ser. Entretanto, sua metafísica sombria permite lançar uma suposição que transcende a presença de um sósia: o protagonista possui um duplo, um assunto recorrente na literatura.
Em linhas gerais, recheado de citações literárias e reflexões freudianas, End? apresenta um romance baseado ?naquilo que o budismo chama de consciência-unicamente ou naquilo que a psicologia profunda chama de mundo do inconsciente? e conforme afirma na Introdução: ?... desta vez pensei em tentar escrever um romance em que eu investigasse esse outro eu dentro de mim mesmo?. Sem dúvida, uma atitude corajosa que poderia chocar seus leitores, pois Escândalo traz à luz ?sentimentos muito fortes que, quando reprimidos, não se desfazem nunca e acumulados no coração, ardem em fogo lento?.
Resumidamente, o romance tematiza a própria literatura, aborda a questão de identidade, o envelhecimento como rito de passagem que envolve suplícios e também trata brevemente da glorificação da estética do feio. Todavia, seu fulcro gira ao redor ?dos aspectos tortuosos, contraditórios e emaranhados da sexualidade humana?, no caso, ?o impulso sadomasoquista cuja origem está em coisas que nos estimulam sexualmente, terrenas, perigosas e por vezes cruéis, das quais nos dissociamos quando não estamos excitados?. Finalmente, End? discorre sobre o pecado, uma manifestação de nosso anseio por renascimento, e não é por acaso que o ápice narrativo compreende um período que vai de uma Sexta-Feira 13, dia que Jesus morreu, até a Páscoa.
Cinco estrelas! Escândalo superou minhas expectativas.
* Optei pelo e-book, recomendo.
* Os trechos entre aspas fazem parte da Introdução e da narrativa.