Gravidade Zero

Gravidade Zero Alexandre Guarnieri




Resenhas - Gravidade Zero


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Penalux 12/06/2017

Natureza e artifício em Gravidade zero, de Alexandre Guarnieri
Alexandre Guarnieri, em seu terceiro livro de poemas, Gravidade zero, consubstancia o máximo da expressão da arte, não em ser uma “estilização” de temas ligados a outros saberes com termos científicos sendo metaforizados, mas em apresentar o elo invisível que existe entre a densidade das metáforas vibrantes com a frieza de uma linguagem científica e objetiva. Revelando uma escatologia, com sua destruição e fim, o poeta, paradoxalmente, produz vida em algo ligado à sua instrumentalidade. Assim, temos ao mesmo tempo uma gênese da palavra, com sua vida e criação, e um apocalipse da linguagem, com sua catástrofe e destruição.
No poema que abre o livro, o escritor associa algo artificial à natureza, ligando, a partir da metáfora dois universos que pareceriam distantes, a natureza e o artifício. Mas enganam-se os que pensam que esta “anima” que se sobrepõe ao tecnológico seja uma alma transcendental para as coisas. O poeta, magnificamente, dá uma sobrevida linguística aos elementos que compõem o avião neste poema; produz uma alma das formas-objetos como fenômeno de linguagem: “...as hélices, como se despeta-/ladas...”, estas “pétalas de lírio” reforçam o poder da imagem em se criar analogias entre o que se vivifica e o que se destrói, o que se inaugura e se consome. E é a partir dos sinais gráficos também, aproveitando-se dos espaços da página em branco, que Guarnieri recria uma linguagem em todo seu processo inventivo. No verso acima, ele também se vale da fragmentação da palavra, como em despeta-/ladas. Esta utilização de sinais como asteriscos, colchetes, barras, de certa forma, produz certo distanciamento da língua propriamente dita, a palavra. Isso tudo demonstra um intenso jogo de fragmentação e corte do eu. O uso de letras minúsculas nos títulos e início de todos os versos revela a quebra do discurso solene de um eu-lírico que quer se identificar.
A solidão do indivíduo que se apresenta aqui a partir do personagem criado por David Bowie, em Gravidade zero, recriado por Guarnieri, não quer dizer o centramento de um ego, mas tão só a observação minuciosa de sua própria realidade a partir da própria linguagem, fazendo-nos lembrar do célebre livro de Roland Barthes, O grau zero da escrita, que falava de um “para além da linguagem”, unindo a escrita do autor à sua dimensão do tempo e da história. O poeta aqui em questão faz um verdadeiro recorte da temática apresentada, a odisseia espacial, mostrando uma história do tema da viagem, comparando o imaginário das grandes navegações ao universo do espaço celeste. Várias vezes o poeta utiliza esta associação, comparando o mar ao céu: “...no oceano noturno do céu”. Ele mostra a verdadeira evolução da técnica ao longo da história até atingir a conquista espacial. O autor revela um pleno domínio da língua, em que um trabalho de pesquisa foi feito e, assim, vemos o grande conhecimento que ele tem disto que ele circunscreveu como limite, mas também temos o ilimitado do espaço literário-sideral, deixando transbordar do domínio estritamente histórico para se expandir entre outras paragens. Esta é a riqueza no diálogo entre língua e história.
Se desde a Antiguidade, temos o tema da viagem, como no personagem Ulisses, de Homero, passando por Luciano de Samósata, com sua guerra entre o Sol e a Lua, em Uma história verdadeira, caminhando pelos cavaleiros medievais, por sua Demanda do Santo Graal nas lendas arturianas, às Grandes Navegações com o desconhecido, seus monstros e medos, o que se busca nesta odisseia do astronauta /cosmonauta Tom? Qual o sentido de sua viagem? Para isto, temos de remontar ao imaginário da infância, apresentado por Guarnieri, na primeira parte do livro. A brincadeira parece dar o tom maior para esta revelação. Outra vez as similitudes aparecem, onde Alexandre, a partir de brinquedos e jogos, como aviões, naves espaciais, trens que voam como foguetes, à dimensão maior de um Grand Prix (agora aqui o espaço da Terra é que é comparado ao Céu-espaço) remetem-nos às analogias que se criam a partir das metáforas. Já o grande Hermes Trimegisto dizia que o que está em cima está embaixo, unindo o macrocosmo ao microcosmo. A aproximação Terra/Céu/Mar cria uma hospitalidade entre territórios e só reforça ainda mais o descentramento do eu pela busca de um lugar, uma geografia das palavras.
Walter Benjamin, em “História cultural do brinquedo” dizia que “o brinquedo infantil não atesta a existência de uma vida autônoma e segregada, mas é um diálogo mudo baseado em signos entre a criança e o povo”. Assim, a busca da viagem em Tom não quer ser a procura do eu, mas como o próprio poeta revela, quer ser o conhecimento da alteridade, do outro, do alienígena e o espaço é o local propício para este aventura, pelo afastamento do lar, de um desterro, um afastamento da Terra para que o confronto com o ser e não com o ego seja possível. O astronauta Tom se vê no espelho do espaço. Se Narciso se vê nas águas e se envaidece com a própria imagem, com o eu, aqui, em Guarnieri, temos um anti-Narciso, como podemos ver na sua poesia dividida em 10 partes em “os dez graus dos contatos imediatos”. Assim, a partir do espaço se vê a imensidão, o amplo, o macroscópico, enfim, o todo, além do ego. O cosmos é o mistério, o “enigma maior”, um abismo. E, por isso, se reconhece o humano como um valor a ser descortinado.
Alexandre Guarnieri tem a grande capacidade da observação e da descrição, remetendo-nos à brilhante Elizabeth Bishop, que por sua objetivação através dos poemas nos revelava em suas viagens a partir dos textos a intensa dose de minúcias e imagens particulares. O poeta é bem calculado, usa uma linguagem bem elaborada e arquitetada, como Dédalo em suas invenções mirabolantes, em que ao mesmo tempo em que Ícaro alça voo, também apresenta o derretimento das asas, que é a circunscrição aos limites da Terra. Em Guarnieri não temos um discurso caótico e vazio, ao contrário, ele é pleno de estruturação bem pensada nos limites que lhe impõem a História (as asas sendo derretidas pelo Sol), mas ao mesmo tempo com os voos imaginativos para a escrita, temos a riqueza imagética de seu cosmos literário como se o Sol fosse o brilho da invenção poética e a queda o limite imposto a ela.
O poeta, por ora aqui apresentado, não faz de seu espaço sideral uma zona de sublimidade, é propenso aos desastres, mortes e quedas, à sujeira da vira-lata Laika, ao vício de Tom. Na época das Grandes Navegações se pintava o mar com seus monstros e medos. Aqui, novamente, o medo do alienígena, que não é outra coisa senão a própria humanidade. E até se questiona se com o avanço da tecnologia, diga-se, o próprio avanço da corrida espacial, como seria a vida da poesia, da escrita? Na solidão inicial em que Tom se encontrava, ele se depara com o dom para a escrita, com o conhecimento do universo, com o todo, que se mergulham nas órbitas dos versos. Ele encontra o caminho, a harmonia, o Tao. Num dos haicais que ele escreveu, o poeta sintetiza sua própria poesia neste livro, uma mini-teorização sobre o seu próprio fazer estético: “micro ou macro /astro ou átomo/ nexos no espaço”. No espaço branco da página, Guarnieri produz as mais intensas analogias. A descoberta do arcaico (os astros, o espaço), que existiu muito antes de nós, segundo o autor, se coaduna com algo o mais avançado e contemporâneo, que é o avanço tecnológico. Este é a ponte, a possibilidade dessa odisseia sideral de major Tom. Portanto, a relação produtiva entre vários territórios equaciona também uma diversidade de linguagens, em que temos a junção entre o natural e o artificial, o arcaico e o tecnológico, o popular e o erudito, através das diferentes formas textuais, passando do poema épico com suas histórias, narrações e descrições, ao mínimo do haicai, à prosa poética, à crônica e ao diário. Esta pluralidade de signos reforça o domínio que Guarnieri tem da palavra exata, essencial, revelando um autor pleno de si, que vai fincar sua escrita na história da literatura.

Por Alexandra Vieira de Almeida – Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
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lets 12/06/2017

“GRAVIDADE ZERO” LEVA O LEITOR A UMA VIAGEM POÉTICA PELO CENTRO DO UNI-VERSO DE BOWIE E DA POESIA TROVADORA
A física serviu de corpo para a corrida espacial, para o homem ir à lua. Ser, viu-se onde nenhum homem jamais pisou, Marte já foi sonda-do. Foguetes, naves, estações orbitais, giram pelo espaço em busca da escuta de quem nem Freud jamais sondou: o espaço, este outro correlato, sem muito sentido lato, pois não há saídas nem viadutos nem avenidas, dizia Itamar. Mas imaginar é proficiente, é ciência. Assim como os roteiristas descobriram que o olhar para espaço sideral tinha algumas lacunas para se preencher, coisas que os cientistas, apenas, indagavam para fins de corrida espacial (guerra fria) os artistas iam, corriam, para indagar quem? somos nós numa espécie de espelho invertido do corpo estelar do nosso organismo que pode ser uma galáxia ainda não desvendada.

No livro Gravidade zero do poeta Alexandre Guarnieri, lançado pela Editora Penalux, temos uma linha investigativa que parte de uma discografia de um dos artistas mais criativos que surgiu no Pop no século XX: David Bowie. Pensar o espaço no pleno e aterrador século XX foi algo límbico. Foi como sondar a mente do homem perante a barbárie da destruição, do embate ideológico entre fronteiras do Ocidente e Oriente. O espaço nunca foi tão avassalador ao homem, em sua sede de conquistas, como foi nos vintes. O poeta constrói em seus versos, uma costura entre a obra do cantor que teve alguns álbuns com leves tons de baixo desta corrida espacial; deste uso da tecnologia de ponta para construção de foguetes, de testes com animais para servirem de experimentos como suporte físico no espaço.

Seus poemas pegam alguns álbuns do Bowie, e fazem uma síntese do reverbere da ação do homem no espaço. Sua poética através de passagens do enredo do cantor nas letras, ressignificam a crítica a uma corrida armamentista que Estados Unidos e Rússia fizeram e que culminaram na Guerra Fria, na polarização de forças militares entre Ocidente e Oriente.

Há também uma interessante tanto do Bowie como do poeta Alexandre Guarnieri uma desconstrução de Gêneros. De uma certa prepotência hedonista masculina em deter o poder. Em acumular riqueza. A música e a poesia (letras) por serem o discurso mais aglutinador que arte gerou é talvez o mais demolidor de mitos e também fundador de mitos. Seu aspecto e espectro geracional de radiografar épocas e costumes tem um valor de emblema.

(Por Fernando Andrade)

site: http://ambrosia.com.br/literatura/gravidade-zero-leva-o-leitor-uma-viagem-poetica-pelo-centro-do-uni-verso-de-bowie-e-da-poesia-trovadora/
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Krishnamurti 17/07/2017

O presente é uma neblina vasta em Gravidade zero
O poeta Alexandre Guarnieri mais uma vez surpreende os leitores. Da estreia em livro com “Casa de Máquinas” (2011) ele retoma sua singular poética em 2015 com “Corpo de festim”- ganhador de um Jabuti, para agora nos brindar com Gravidade Zero. Os três livros vistos numa perspectiva de conjunto da obra até aqui publicada, e em que pese a temática específica de cada um deles muito bem trabalhada, representam como que uma trilogia poética a representar a grande epopeia da aventura humana dos últimos tempos. Da “Casa de máquinas” que aborda a mecanização da vida cotidiana, e as pressões sociais, ao interior do Corpo humano (de festim) que sofre um tal viver opressivo. Neste último, “gravidade zero”, o homem é lançado no espaço sideral, para além do conhecido, num futuro que se divisa a partir de um presente nebuloso. Há um poema no livro inclusive bem claro quanto a isto: “Nosso futuro entre nebulosas”.
O livro pretende-se, é de fato o é, uma homenagem ao pop star David Bowie – 1947-2016. Importante lembrar como chave de contextualização temática do livro, que Bowie foi o criador de personagens que ele próprio interpretava em suas canções como o Major Tom (astronauta fictício da música Space Oddity de 1968), que constituiu um emblema da euforia do homem que estava indo à lua, e também Ziggy Stardus, símbolo da sociedade insana que surgia na década de 70, com sexo, drogas, exuberância e irreverência. De fato o astro inglês era senhor de singular capacidade de somar influências em sua arte (soul music/sintetizadores/parcerias com o Queen etc.).
Depois de salientar a consciência radical do campo “ampliado da poesia por uma racionalidade construtiva que aplica à materialidade – sempre contraditória – dos fenômenos sociais e existenciais convertidos em procedimentos retóricos, a retórica particular do poeta, aberta e descontinua em suas cesuras”, o escritor Nuno Rau em posfácio à obra, aponta também certas características que sem dúvida podem ser sentidas nesta última obra de Guarnieri: A diluição do eu lírico”;
“Está tudo tão calmo fora da espaçonave / que ao ego seria concedido / o finalismo do escapista / não há perigo de colisão / o ego / em gravidade zero / (já tão diluído o eu lírico) / espera a derradeira dissolução”. Poema “HAL 9000”.
ou a sensação iminente de um desastre humano caracterizado como a saída de um espaço histórico, uma ruptura, separação da estrela, um corte do “campo gravitacional” que nos mantinha presos a noções centrais”. E, singularmente, o diálogo com a tradição que o Major Tom (o de Guarnieri) empreende:
“Será deus, o demônio ou o vazio, / esse anjo de cromo, com o qual, / a minha própria imagem, / projetada, dança ? Poema “o anjo cromado”.
Mas ler Guarnieri aqui e agora, nos traz de volta também à memória, aquela frase que Mário de Andrade escreveu em seu segundo prefácio à Macunaíma: “O presente é uma neblina vasta.” Explicamo-nos quando concordamos com o filósofo italiano Giorgio Agamben ao afirmar que em nossa época, e “suspenso no vazio entre o velho e o novo, passado e futuro, o homem é lançado no tempo como em algo de estranho, que incessantemente lhe escapa e todavia o arrasta para a frente sem que ele possa jamais encontrar nele o próprio ponto de consistência”.
É portanto sobre o tempo contemporâneo que o autor dirige seu telescópio com mais apuro. De um mundo em que estamos paradoxalmente desabrigados na desagregação do presente sem que haja conciliação plenamente possível, figurando a tensão entre a abertura das nossas e de todas as outras forças lançadas, vivemos sua mais alta voltagem, apenas para de lá sermos praticamente ejetados quando tentamos lhe oferecer um relevo. Nele, entretanto, só podemos entrar com o que nos singulariza, descoberto, alias, a posteriori, como, na diferença em relação ao que ha pouco nos acreditávamos sendo, mais um efeito do contemporâneo, como um resultado do impacto sobre nosso corpo, sobre nosso pensamento, sobre nossa capacidade de sofrê-lo e imaginá-lo, a nos inserir politicamente no jogo do contemporâneo, no qual nossa vida e lançada. E no entanto:
“tudo é queda / tudo se desconecta / tudo busca a reconexão”. Poema “Major tom”
“Quanto ao contemporâneo, pela imersão nele, pela paixão que sentimos por ele, pelo pacto vital e oculto que temos com ele, por mais críticos que tenhamos nos tornados, não estamos aptos contudo, a fazer uma história dele, resta-nos pensar o contemporâneo enquanto o que insiste, enquanto o que persiste, através do retorno irrefreável de seus efeitos. Com ele escorrendo pelas mãos, agarramos apenas o vazio. Afigura-se com uma carência que não deixa de possibilitar a passagem excessiva de alguns vultos (seus efeitos, suas obras, seus conceitos), com os quais tentamos mínima e ilusoriamente nos amparar”.[vide: Pucheu. Alberto, in: Apoesia contemporânea – Ed. Azougue editorial-2014].
Ocorre também, e é preciso que se assinale em meio a uma tal conjuntura, que a vontade de comunicar do artista cria uma maneira de dizer e um dizer sem maneiras, sem garantias impulso de deslocação sem ponto de partida fixo. E a poesia contemporânea em sua radicalidade critica (de que o autor é um dos representantes mais ativos), foge mais ainda aos limites formais, e busca seu lugar próprio, sua identidade, o que ela é em si, manifestando-se das maneiras mais imprevistas, dos jeitos mais insólitos e excêntricos. Lança mão da fusão das diversas mídias, incorporara “narratividades”, e acolhe diversos modos discursivos.
E tudo isso sem que se perca de vista o que Jean Luc-Nancy em Identité, afirma com muita propriedade que “Existe uma zona franca sobre a qual não se exerce nenhuma autoridade, nem mesmo a de minha vontade ou a de meu desejo, uma zona da qual talvez eu não possa dizer nada em termos de ‘identificação’ (caracterizações, atribuições), mas pela qual eu sei que, estando atras de mim, e a partir de onde eu posso ao menos tentar me identificar ou permitir que os outros ensaiem essa mesma possibilidade”. A poesia contemporânea é uma intervenção – e bom que se repita – politica não-politica a proporcionar, a todo custo, tocar essa “zona franca” que, anterior aos sentidos, franqueia a escrita a ela mesma; por ser anterior ao pensamento, por ser anterior ao sentido sendo mesmo desde onde o sentido se faz, dessa “zona franca”, não se pode fazer nem um objeto nem um sujeito, em um mundo que, privilegiando as identidades que coincidem consigo mesmas, tende a miná-la, querendo mesmo eliminá-la.
Também já se escreveu que o autor estiliza poeticamente neste livro a aventura da corrida espacial como uma tapeçaria cultural em que vai engastando a pouco e pouco, e pacientemente, a substância de sua poesia. E o faz de maneira a pensarmos juntos essa nossa sensação de que algo que não se encaixa na conformidade do tempo, de que algo permanece desconexo, desarticulado, descompassado. Desse cotidiano, no qual perdemos nossos nomes, identidades, demandas, oficios, utilidades, contratos, convenções, finalidades... e observe-se a quantas andou a objetividade do autor neste exemplo:
“Como se tudo que agora voa (à solta) / reclamasse um enxerto (adesivo ou aderível) / de velcro ou ímã magnético para fixar-se / às paredes côncavas de túneis salas passagens / e todas essas “aparições” não fossem, nelas mesmas, / as próprias coisas, mas meras cópias fantasmagóricas,”
E mais adiante, no mesmo poema:
“...( porque há o esforço / para naturalizar ao olho humano / uma realidade suspensa em que tudo / parece livrar-se ou estar à deriva )
Neste poema, justamente o que dá título ao livro “gravidade zero”, o autor coloca em prática aquilo que Jean-Luc Nancy chama da “resistência infinita” da literatura, porque a poesia é muito hábil em impotências, força que ela conhece como poucos, desde sua impotência, ela mostra a violência de como os sentidos dos poderes se estabelecem. Bem a ilustrar essa nossa circunstância é o enunciado por Alberto Pucheu em “Apoesia contemporânea”. “Se há alguma ruptura no contemporâneo, é para que nos coloquemos no abismo intervalar de sua fissura, jamais na exclusividade dos lados tidos como sólidos de suas margens. Sem esperar o retorno hipotético a uma das margens nem a chegada futura a outra, o contemporâneo, que nos absorve, sabe que, na medida em que a erosão foi grande, na medida em que a erosão é imensa, as margens foram empurradas cada vez mais para longe, flutuam no abismo e qualquer peso sobre elas continuara mantendo a leveza da queda”, esta a gravidade zero que nos traz Alexandre Guarnieri.
E um último comentário oportuno: quase ao final do seu livro o autor nos deixa entrever um pouco mais de sua profunda consciência do que é a Literatura, no pungente texto em prosa poética “entresstrellas”, no qual recorda a doença de sua avó. A certa altura escreve: “...e se agora ela é trazida de volta, vindo à tona com a mesma força daquela imagem que capturei de esguelha, por acidente, talvez seja para que eu estique um pedaço de mim e o lance ao outro lado do tempo, atravessando essa ponte, essa janela que agora reabre e eu sei que mesmo impossível uma viagem no tempo, na emoção tudo é realizável e me proponho curar em mim mesmo, nessa viagem, aquela imagem, curar da minha avó, dentro de mim, todas as feridas febris, limpá-las, fechá-las”. Este o poeta, esta sua obra.
Livro: Gravidade zero – Poesia, de Alexandre Guarnieri. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2016, 162p.
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tonho frança 26/10/2017

O espaço de Guarnieri
O autor Alexandre Guarnieri que dissecou o corpo humano pelas lâminas da poesia, recebendo o prêmio Jabuti com o seu “Corpo de Festim”, entrega-se ao rico conjunto de palavras, nomes e cores, visíveis e presentes no universo do espaço.
O protagonista desta obra é o Major Tom, citado nos poemas e retirado do mundo pop de David Bowie. Este cantor que ambientou Major Tom no universo espacial, serviu como referência a um intuito similar por parte de Guarnieri. O personagem desbrava-se internamente na observação externa do espaço, e por suas palavras expressas em “Gravidade Zero” demonstra a grande riqueza deste conjunto infinito de céu e universo.
Guarnieri apresentará Tom, como um homem maravilhado pelas possibilidades tão amplas do universo espacial, que mesmo em vista de uma máquina cinza e monocromática, como um avião, consegue por meio das suas palavras trazer-lhe beleza, em uma lógica de contemplação que se viabiliza na argumentação lírica do escritor.
No poema “hallo spaceboy (III)” Tom está recém-chegado a um espaço metropolitano. O escritor contextualiza para o leitor o perfil divagante de Tom - se que perde na contemplação das várias luzes oriundas da movimentação da cidade. Porém, o poema direciona-se para aquilo que é a maior fonte de devaneios do personagem: o próprio Espaço. No poema, mesmo a locomotiva de brinquedo trazido pelo avô de Tom se torna uma astronave.
Como característicos do autor, um tema é escolhido para ser abordado nos versos livres que são desdobrados em ampla variedade de ideias, as quais são criadas pela técnica de ajuntar palavras em uma longa sequência de períodos. Este recurso produz uma análise criativa capaz de expressar o encantamento produzido no escritor e no leitor, pela contemplação do espaço.

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Adriana Scarpin 01/09/2018

Laika (1954 - 1957)
"tendo idealizado o espaço,
( há odor de fezes na astronave
há uma vira-lata molhada e
sua murrinha ) o cosmonauta se choca
ante a realidade suja: uma desagradável
crise sanitária instala-se, grave,
a anos-luz do seu planeta natal;

sentindo cheiro de pólvora na urina,
o insuportável aroma da amônia
e tudo isso aprisionado às narinas
foi possível senti-lo, inibido, animal cinerado:
estaria mesmo ali o cadáver da mais fiel
das almas entregue ao vácuo ou apenas
o retraído simulacro de um canídeo?

pondera sobre como laika teria ganido,
no limiar entre a vida e a desaparição,
o desespero de não emitir som,
sem osso ou carinho ( o rabo que não abanou )
não houve presença humana apenas
o frio monitoramento telemétrico
de suas tímidas funções vitais;

sem uivo que ecoasse no espaço, não houve
a quem seduzir com o olhar pedinte
da cadela vadia querendo acolhida e abrigo:
à mercê da eutanásia calculada, ( o sacrifício
físico do bicho ainda sanguíneo) afinal
nada disso é possível quando se está prestes
a explodir à bordo do segundo sputnik"
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