Aline T.K.M. | @aline_tkm 14/02/2015Saboroso e lancinanteFama, dinheiro, mulheres. O que acontece na vida de um cara que tem tudo isso em quantidades respeitáveis e que, da noite para o dia, se vê sem nada daquilo que um dia conquistou?
O famoso apresentador de TV e cantor de sucessos pop Jason Taverner acorda sozinho num quarto de hotel mequetrefe, sem saber como foi parar lá. Não demora muito e ele percebe que ninguém mais – fãs, amantes, agentes... ninguém! – o (re)conhece: ele passou a ser um completo desconhecido. E mais, não só se vê destituído de sua vida de celebridade, como tampouco é um cidadão perante a lei. Sem qualquer registro legal de sua existência, é como se Taverner não existisse nem houvesse sequer nascido.
Adentrando a ilegalidade, o ex-apresentador busca por documentos falsificados e foge das autoridades, enquanto tenta decifrar o que ocorreu e encontrar sua própria identidade.
Neste combo de distopia e ficção científica, a trama se desenrola num universo onde o Estado é comandado por uma polícia opressora, vigilante e manipuladora. Os estudantes universitários e os intelectuais são marginalizados e constituem a camada mais baixa da sociedade, sendo enviados para campos de trabalho forçado. Já os negros foram em grande parte eliminados, e seres humanos híbridos (resultantes de modificações genéticas) foram inseridos no meio da população. O próprio Jason Taverner, aliás, é resultado de uma dessas modificações. É um Seis, como é chamado, e conta com atributos como a beleza física e um poder de atração bem acima da média, que fazem com que essa “espécie” geralmente tenha êxito no showbiz.
À parte o conflito central da trama e todo o universo criado por Philip K. Dick, também as personagens femininas merecem atenção especial. Na verdade, não apenas as personagens em si, mas a maneira como são retratadas as mulheres nesse mundo futurista e simultaneamente retrógrado. Elas vão de manipuladoras, pervertidas e egocêntricas, a seres por demais receosos e que despertam a compaixão do protagonista. Cem por cento das vezes, no entanto, elas se revelam únicas, marcantes e inesquecíveis.
Fluam, minhas lágrimas, disse o policial mexe com os sentidos e bagunça a percepção do real, tanto dos personagens como do próprio leitor. Chega a ser inevitável, em algum momento da trama, o questionamento da realidade do protagonista – será que ele é mesmo quem acredita ser?
Assim como nos contos de Realidades Adaptadas, aqui também somos tomados pelo sentimento paranoico da dúvida. Muito mais do que mergulhar no fascínio próprio da distopia e da ficção científica – o autor não se demora muito em explicações sobre o universo criado –, alcançamos as profundezas do ser humano e os questionamentos acerca de suas percepções. Afinal, o que é a realidade? E o que faz de alguém um ser humano?
Gente geneticamente modificada, drogas de efeito duvidoso, uma polícia que não preza muito pela ética; tudo isso misturado a turbulências humanas nos mais variados níveis – identidade, incesto, senso de justiça – são elementos de uma trama saborosa e lancinante a um só tempo. Trama cujas fronteiras de realidade e de percepção permanecem numa turbidez que nem a imaginação mais fértil seria capaz de conceber.
LEIA PORQUE...
O livro é viagem do começo ao fim! Soma-se a isso a narrativa objetiva e sucinta de Philip K. Dick, questionamentos filosóficos e uma sociedade situada – algo deslocada, é verdade – em algum lugar entre o futuro e o passado. Como se não bastasse, ganhou o prêmio John W. Campbell em 1975 como melhor romance de ficção científica. Leitura obrigatória, sem dúvida.
DA EXPERIÊNCIA...
Os questionamentos e conflitos dos personagens são universais e facilmente transportados para a nossa realidade. É aquele livro que a gente quer muito saber como termina, e ao mesmo tempo não quer que chegue ao fim tão cedo.
FEZ PENSAR EM...
Inevitavelmente, no clássico distópico "1984", por aspectos como a opressão e a vigilância, e a marginalização daqueles que podem ter algum poder de transformação.
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