Flávia Menezes 21/03/2024
O CLÁSSICO MOMENTO DE [HAROLD] PINTER.
?As brasas? é um romance publicado em 1942, escrita por Sándor Károly Henrik Grosschmid, escritor, jornalista, poeta, dramaturgo e romancista de etnia húngara, nascido na Eslováquia, e descrito como um autor que foi um ?verdadeiro amante dos valores morais e civis?.
Com um repertório que remonta mais de noventa obras publicadas entre 1918 e 1988, Márai foi uma figura de notoriedade na intelligentsia húngara,além de ter sido um leitor voraz de Nietzsche, Freud, Spengler, Ortega y Gasset, Gide e Proust, e o tradutor de Kafka para o húngaro, tendo o seu estilo de escrita sido comparado a nomes consagrados como os de Thomas Mann, Robert Musil, Arthur Schnitzler e Gyula Krúdy, escritores de quem (inclusive!) foi contemporâneo.
Neste romance, dois grandes amigos do passado (Henrik, um velho general húngaro aposentado, e Konrad, seu amigo dos tempos da escola militar) voltam a se encontrar após quarenta e um anos em que se mantiveram separados, abrindo as comportas do passado, reavivando a lembrança dos doces tempos da juventude, enquanto vão ateando fogo para reacender a chama de um antigo acerto de contas, que foi o combustível que os manteve vivos por tanto tempo.
Entre a espera e o reencontro, a trama, que é dividida em duas partes (onde em um primeiro momento acompanhamos as memórias pregressas de Henrik, e no segundo, o encontro que tem seu início durante o jantar e segue noite adentro), se aprofunda em um monólogo dramático e repleto de dor e mágoas, neste microcosmo temporal em que o passado se sobrepõe ao presente, e os dois amigos apenas coabitam a cena como meros expectadores desse embate feroz entre o tempo e os sentimentos.
Nas linhas que se seguem, pouco a pouco vai se revelando sem qualquer pressa ou ansiedade, essa tensão entre o passado e as hipóteses que contrariam esse passado, dando forma e tom a trágica epopéia da frustração e expressão ontológica do desmoronamento do homem diante de si mesmo.
O lirismo da prosa de Márai é realmente impressionante, inebriando nossos olhos e mentes com os muitos devaneios e divagações de um protagonista-narrador que nos convida a refletir sobre os valores da amizade, da paixão e da honra.
Enquanto vamos conhecendo em minúcias o perfil psicológico de Henrik, que se abre para nós sem reservas ou anseios de se desnudar até o limite da vergonha e humilhação humana, já Konrad, esse personagem coadjuvante e antagonista, permanece impassível, mantendo-se calado durante todo o tempo. E quando ele fala, é apenas para provocar ainda mais a nossa angústia, sedenta por conhecer toda a verdade.
E nessa agonia de ouvir... e ouvir... e ouvir a monotonia na voz de Henrik que jamais se cala, mas que ao contrário, não se cansa em expor cada ínfimo julgamento seu, o que de fato aguardamos é pelo momento em que Konrad vai se impor, e tomar (enfim!) à frente desta narrativa.
Mas é quando isso parece estar prestes a acontecer, e Henrik solicita que a voz de Konrad se faça ouvir acima da sua, é que o autor nos coloca diante deste clássico ?Pinter´s Moment? (ou ?Pinter´s Pause), em que no silêncio onde as palavras não são ditas, vertem significados.
Mas apesar da elegância e delicadeza desse lirismo, e da construção impecável de um extenso monólogo embriagado pelas emoções inflamadas de Henrik (e que se contrapõe de forma sublime ao silêncio sem qualquer piedade de Konrad), confesso que a beleza e a maestria do romance estão muito mais na sua construção, do que na sua significação.
Ler sobre a idealização infantilizada que Henrik fazia da sua relação no passado com Konrad, e a forma como ele se mostrava indignado e magoado pela ruptura de um vínculo afetivo que para ele parecia ser tão sagrado quanto os laços do matrimônio (se não mais!), chega a ser algo absurdo e até tolo.
Afinal, Henrik não é mais um garoto em idade escolar, mas sim um homem idoso, bem vivido, que assumiu as incontáveis responsabilidades que uma alta patente exige, mas que ainda assim passou páginas e páginas me entediando com sua linguagem infante para falar dessa amizade como se coubesse a ele reivindicar direitos sobre o outro.
Era como se Konrad fosse sua propriedade, ou seu servo, e sua vida estivesse presa a ele como dois gêmeos siameses. Aliás, houveram momentos na narrativa em que Henrik se mostrava como um verdadeiro Hamlet shakespeariano. Digo isso para descrever o nível de insanidade que se observa na fala dele.
E desse perfil pueril, arrogante e com ares de tirania, Henrik passa a se mostrar um homem de uma ingenuidade quase que imaculada, quando fala com surpresa dos atos abomináveis que sua amada e falecida esposa, e aquele que ele considerava o seu melhor amigo, quase como um irmão, cometeram contra ele.
A forma como ele narra o passado utilizando verbos no presente, me dava a ideia de Henrik ser um homem delirante, porque tudo era dito com uma dramaticidade excessiva, e que não caminhava para uma resolução, mas sim para a permanência neste estado de dor e sofrimento (vitimização).
Entendo a licença poética de Márai de escrever essas cenas com uma dramatização agonizante que foca muito mais nas dores do Henrik, do que na verdade que reside por trás do que realmente aconteceu. Mas quando permaneço páginas e mais páginas neste mesmo lugar, nesta mesma dor, nesta linguagem cíclica do narrador que decide que a verdade é o que ele acredita, e não o que o outro tem a lhe dizer, eu confesso que isso me enerva mais do que me encanta.
E o curioso é que por mais que a narrativa denunciasse os pecados atrozes cometidos por Konrad, ainda assim, eu me ligava mais a ele do que a Henrik. E sinto que isso acontecia, porque o que realmente contava (para mim!) na trama era exatamente o que Henrik não podia me dar de jeito algum: a verdade! Algo que se mantinha trancado a sete chaves na alma de Konrad.
A idealização que Henrik tinha sobre amizade era bem contrária à minha. Assim como não consegui concordar com a imagem final que ele faz sobre a paixão. E tudo bem ler sobre algo tão diferente do que eu penso, porque isso é o que há de mais proveitoso na literatura. Mas o caso é que essas eram concepções tão infantes e estúpidas, mesmo com toda essa prosa poética que lhe concede ares de uma respeitável sabedoria, que ao final, sinto como se esse romance não tivesse me acrescentado muita coisa.
De fato, quando olho para a construção da história e tudo o que a escrita de Márai representou (e continua representando) para a cultura húngara e todas as outras descendências que o compõem, eu consigo ver as inúmeras virtudes dessa narrativa que agradou tanto a muitas das pessoas que o favoritaram por aqui.
Mas quando eu paro para observar o seu conteúdo, e na minha singularidade busco pela sua significação, eu não consigo encontrar muito que me prenda a essa história.
E por isso mesmo é que mais do que continuar agindo como Henrik, reclamando perpetuamente os meus desagrados, eu escolho encerrar essa resenha com o meu próprio ?Pinter´s Moment?.