Procyon 07/02/2023
Senhora dos afogados ? Resenha
Senhora dos Afogados é certamente a peça mais ?helênica? que eu li de Nelson Rodrigues ? provavelmente por conta da Electra Enlutada de Eugene O'Neill (1931), que por sua vez é baseada na Oréstia de Ésquilo. É possível, no entanto, ver ainda paralelos com a Electra (a de Sófocles e a de Eurípedes) e Medeia, de Eurípedes. Como retomada do mito clássico, Nelson, na falta de deuses, confere nomes bíblicos (isto é, sagrados) aos personagens masculinos e nomes profanos às personagens femininas. Isto porque Nelson quer justamente desconstruir o mito, desta vez não o clássico, mas o mito cristão, da mulher casta.
Encontra ecos também no teatro shakespeariano, na medida em que compõe personagens como a da avó ? que evoca as velhas bruxas de Macbeth, ao mesmo tempo loucas e proféticas. Como uma peça calcada no aspecto psicológico e centrado na interioridade das personagens, existe também a presença de duplos: como o de vida/morte, que espelha na duplicidade de Moema (que representa um aspecto de crueldade e egoísmo) e D. Eduarda (na dimensão do carinho e da paixão), rendendo até uma cena antológica de narcisismo).
A presença de personagens sem nomes, como o noivo e sua mãe, ou os vizinhos (que evocam o coro clássico) evidenciam um aspecto coletivo, no sentido de ressaltar que, o castigo de Moema é pior do que a morte: é a solidão. O mar é dado como um personagem principal, sempre onipresente nas ações de personagens e nos contextos das situações. Ele também representa esse duplo de vida e morte (resgate do mito do barqueiro Caronte, que leva as almas ao Hades), morada da morte profunda.
Em última instância, Nelson constrói uma peça repleta de símbolos, e consequentemente, minuciosa esteticamente, na medida em que resgata o ideário de coletividade (ainda que um tanto racionalista) da Grécia Antiga, para criticar (ou expor) os defeitos de uma sociedade (esta não mais calcada nos ideiais racionalistas clássicos, mas modernos, e pretensamente desenvolvidos), defeitos que tal sociedade teima em esconder. Enquanto na Electra euripidiana o enfrentamento era permitido somente aos homens (é Orestes, influenciado pela irmã, que mata mãe e amante), em Nelson são as mulheres (ou mulher) que toma a iniciativa. Contudo, Nelson capta o melhor de Sófocles (a força educativa, o foco na psiquê das personagens) e de Eurípedes (as contradições morais de uma sociedade iluminista, as variedades da existência humana) e readequa esses mitos à modernidade, fazendo uma análise profunda dos crimes e paixões que nascem do seio da maior instituição da sociedade iluminista moderna: a família.
Sófocles, Ésquilo, Eurípedes e Nelson Rodrigues representaram o matricídio como forma de demonstrar as contradições de seu lugar e de seu tempo; Nelson, tão ou mais provocador, adiciona a isso o incesto, e, com isto, choca tanto ou mais que as tragédias milenares.