Allan Regis 08/01/2021
Os debates do 'Grande Debate'
Sabe-se que um autor escreve uma obra de mérito quando ela transcende seu escopo inicial e se torna fonte múltipla de reflexões possíveis. Yuval Levin faz isso com propriedade - o Grande Debate é um trampolim para calorosos debates históricos, filosóficos, políticos e metodológicos. Por isso, nesta arena de resenhas skoobianas - muito boas, por sinal - uma contribuição possível deve incluir uma rápida visita à recepção do livro de Levin nos meios acadêmicos.
Antes, contudo, algumas premissas. Para começo de conversa, Levin é um conservador, como deixa claro no início do livro. Isto será importante à frente. Ele também é um analista político, acadêmico e jornalista. Seria interessantíssimo ler alguns de seus artigos disponíveis na internet sobre a política americana atual. Entre suas obras, sem tradução no Brasil, encontram-se Tyranny of Reason: The Origins and Consequences of the Social Scientific Outlook (2001), magining the Future: Science and American Democracy (2008) e The Fractured Republic: Renewing America's Social Contract in the Age of Individualism (2016). Todas, portanto, com um cunho conservador de prognósticos e proposições para problemas políticos atuais. Já foi chamado de "o intelectual conservador mais importante da Era Obama" na New York Magazine e "a grande esperança intelectual do movimento conservador" no The New Republic. Mas o que a grande esperança do conservadorismo americano tem a dizer do grande debate liberal-iluminista que se armou ao redor da Revolução Francesa de dois séculos atrás?
Resumamos da seguinte forma: o debate Burke-Paine moldou de forma duradoura as duas visões rivais de política no Ocidente moderno, em especial, nos Estados Unidos. Isto é, quando olharmos para um assunto polêmico que divide a opinião pública, por vezes animados por termos técnicos e questões específicas atuais, não nos enganemos: o progressismo de Paine e conservadorismo de Burke estarão lá, como um cabedal de ideias difusas mas poderosas sobre nossas opiniões. Vamos aos prós e contras.
O grande mérito do livro é lançar luz sobre a polarização política americana atual por uma regressão histórica. Levin realiza um raio-x de filosofia política dos arquétipos do liberalismo progressista e conservador gestados na Revolução Americana e nascido no calor da Revolução Francesa. Historicamente, então, Levin reconstrói o grande debate entre Burke e Paine entre 1770 e 1800. Mas, e isso é importante, o que interessa a Levin é a exposição dos pressupostos filosóficos dessas duas tradições e, todo método de seu livro é estruturado de modo a suprir essa demanda. É aí que a história estanca para dar passagem à filosofia política - que é basicamente todo o miolo do livro. O autor paga um preço por sua escolha. E ele esta absolutamente consciente disso.
Quando digo que a história estanca, não me entendam mal: estou pensando em método histórico, e não em descrição histórica. O fato de alguém desenvolver um raciocínio sob documentos de uma época outra não torna esse raciocínio histórico. E não há problema nenhum nisso, a priori. Levin opta pela reconstrução dos tipos ideias dos dois liberalismos de um modo a-histórico, separando por conceitos antitéticos como "reforma e revolução", e então recorrendo as obras de cada um, sem que o contexto seja protagonista em sua explanação. O contexto está lá, mas não é fundamental pro argumento.
Mas, então, você pode fazer a pergunta mais crucial e decisiva para tomadas de decisões dos homens e mulheres mais importantes da humanidade em todos os tempos e eras e lugares e etnias: E daí? Não há possivelmente nenhum argumento que não desabe com essas poderosas palavras. Mas tentarei mesmo assim: E daí que as visões de mundo Burke-Paine, que são expressas por antíteses como 'natureza x história', 'razão x prescrição', 'justiça x ordem' etc., não tem ressonância com as versões contemporâneas dessas ideias, o que depõe contra a própria herança que Levin quer nos convencer que Paine e Burke legaram ao nosso mundo.
É o que nos lembra George Potamianos, em resenha à Levin no The Historian. Ele toma como exemplo a alegação de Levin de um pluripartidarismo que aprazia Burke em detrimento da visão corrupta que Paine tinha dos partidos como um todo. Levin toma a fala de Burke em 1770 de que 'os partidos são um corpo de homens unidos para promover o interesse nacional sobre princípios comuns a todos eles' como um legado da visão burkeana aos dias de hoje. Mas o resenhista lembra que quando Burke o disse, referia-se apenas ao "partido da retidão", que precisava combater os partidos corruptos, faccionais e interesseiros que flagelavam a política inglesa de seus dias.
Jack Fruchtman, outro resenhista, tece crítica semelhante e lembra que a imagem que o autor faz de Paine como ardente individualista não é tão precisa, já que "ele também propôs que os homens trabalhassem juntos para forjar um futuro melhor". Sobre a reverberação dessas duas visões no mundo atual, Fruchtman é igualmente taxativo: "Poder-se-ia acreditar que os conservadores hoje adotam Burke e os progressistas Paine. Mas mesmo Levin sabe que não é bem assim, citando a afirmação recente de Barak Obama, na qual ele afirma ser burkeano em suas ideias sobre política e mudança social".
A partir do livro e da sua recepção, entendo o seguinte: assumindo-se um burkeano, o conservador Levin nos leva para um estudo honesto e rebusto sobre a formação da esquerda e direita de um ponto de vista filosófico-político. Não obstante, sua opção pela reconstrução conceitual o tornou vulnerável para a ligação histórica entre os conceitos que gravitavam na direita e esquerda do século XVIII e o nosso. Creio também, que esse fracasso se deve por ter se feito refém, pouco importa se consciente ou não, da visão de mundo que prescindia, que dispensava: a painiana (eu sei, você pensou besteira). O que quero dizer é simples: a razão abstrata que Levin denuncia em Paine parece ser muito o que os psicanalistas chamam de projeção. E me parece, de um modo ainda mais hipotético, quase um palpite, que o grande debate marca a delimitação de um território num momento histórico de escalada para a polarização.
A direita tradicionalmente assume sua identidade por uma espécie tato mais sensível para o 'real'. Vê-se em 'Politica da Fé e Política do Ceticismo' de Oakeshott, em que a direita é cética e a esquerda passional; ou em "Conflito de visões" de Sowell, em que a 'visão restrita' da direita se contrasta com a visão irrestrita da esquerda. Todas essas definições tem um traço em comum: a rejeição da direita populista, do fascismo e do nazismo. Em 2014, quando Levin publicou o livro, a polarização política que vigora e só cresceu até aqui, culminando na invasão do capitólio em 6 de janeiro de 2021. A partir desse olhar do conservadorismo que acabei de ilustrar, em cada um desses livros, é impossível encaixar a alt-right. Muito ao contrário, a esquerda parece adotar premissas de Peine, e a direta, as de Burke. As premissas estão erradas ou a realidade?
Leiam o grande debate analisando a política americana e a política americana a partir do grande debate. E me contem!