Krishnamurti 06/07/2017
ESQUIZOFRENIA SOCIAL
“A morte persegue, a morte chega galopante. E não há ciência ou religião que saiba dar conta desse imbróglio existencial, sabe por quê? Porque não convém a Deus, ele já nos criou certo? Depois disso, disse: “vai rapá, se vira!”, e assim se segue a nossa famigerada caminhada pra qualquer lugar nenhum”. p. 25, Capítulo Dário/Elucubrações de um machão sensível, do livro “Tudo que afeta o movimento”.
E eis que o escoar do “tempo” levou a humanidade a passar de uma matriz na qual se buscava constituir uma identidade coerente, para outra em que a identidade (e tudo que ela implica) tem levado a não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza pois pode-se abandoná-la de uma hora para outra se assim for preciso. O leque de modelos e informações se multiplicou em escalas inimagináveis e, como não poderia deixar de ser, (já que caíram por terra os referenciais tidos como válidos, religião, família, moral) trouxe seqüelas para a construção do Eu em busca da identidade.
Acresce e agrava tal quadro o fato de que ao instituirmos como um dos mais acalentados ícones, o hedonismo, isto é, a dedicação ao prazer como estilo de vida e bem supremo, independente dos meios para obtê-lo, transforma-se muitas experiências naturais do ser humano – perdas, rupturas, imperfeições, etc.-, em circunstâncias intoleráveis e propiciadoras de desequilíbrios. Daí a recusa e evasões, frente às reivindicações da realidade mostrando que, na tentativa de se desviar do sofrimento, a mente humana pode se utilizar de uma série de métodos que começa em pequenas neuroses, ascende às esquizofrenias de toda sorte e quem sabe (?) culminam na loucura pura e simples.
Esquizofrenia... que coisa! É distúrbio psíquico que afeta a consciência do próprio Eu, suas relações afetivas, a percepção e o pensamento. O filósofo francês Jean Baudrillard investigou a mente esquizofrênica e concluiu que ela funciona fractalizada (fracionada). Cada pedaço opera de forma independente criando conflitos. Em chave mais ampla, e ainda segundo Baudrillard, vivemos a esquizofrenia social.
É nesse horizonte da experiência contemporânea que um romance busca a compreensão da realidade humana atual como um jogo permeado pela atitude francamente esquizofrênica de suas personagens. Referimo-nos à “Tudo que afeta o movimento” de Luciano Portela. Dono de um texto límpido, cortante e direto, Portela atem-se ao choque frontal e impiedoso decorrente das relações entre suas criaturas: O machão sensível Dário, uma cadeirante chamada Mirela, a prostituta Benê Fodão, outro machão chamado Diabo Loiro e finalmente um travesti batizado de a Mulher Barbada. Histórias individuais que se entrelaçam, se confundem e acabam por desembocar umas nas outras ante o cenário de uma São Paulo descrita como nefasta, inóspita, fétida e sem sentido.
A trama romanesca vai além da sátira da condição do macho ocidental, sempre pronto a aceitar seja o que for para atiçar a sua fibra erótica, e inclui aí nessa balburdia sexual os mais variados apetites com direito inclusive a escatologias (conteúdo obsceno ou sórdido), onde aflora voluptuosamente a corpolatria, a vaidade, a sexualidade exacerbada, a orgia e o que há de mais obscuro e sórdido em nós:
Trechos:
“Eu descobri uma das grandes maravilhas da vida. O fio-terra. Trepamos feito dois animais no cio, com direito a tudo que duas mentes pervertidas poderiam fazer. Fico cada dia mais feliz quando meu lado animal é mostrado sem nenhum pudor”. p.91
“E assim começou a minha odisseia humana. Todos os dias, todos os minutos, todas as horas do dia. Tudo rigidamente controlado. O intuito era ganhar massa muscular. Virar monstrão” p. 59
… “ notei que até os meus gostos haviam se modificado, não assitia mais pornôs no cinema de masturbação coletiva, não me preocupava com o programa do Carlos Imperial, nem com as mudanças políticas do país. Não lia tanto mais, comecei a ver filmes de ação; era um espectador assíduo, gostava de todas as lutas, Senti vontade de ir ao Rio de Janeiro por causa do Arnold Schwarzenegger, tive como mantra as palavras “amor” e “bunda” para lembrar-me dos dias que teria que exercitar meus glúteos. Seria então um homem, um Neandertal vívido e presente, marcando meus passos nas praias cariocas. Cruzaria com águas vivas e queimaria todas com meu calor humano”. p.60
“Quero que esse monte de massa muscular, pele e carne seja degustado, mas apenas quando eu me deixar ser degustado”. p.98.
É uma ficção que oferece ao leitor a representação de uma tal (des)ordem complexa e resistente . Experiências de aturdimento dos sentidos no contato de relacionamentos que vão paulatinamente produzindo exclusões, violências, silenciamentos e frustrações do ser. E não se pode notar e deixar de referir também, que a conduta das personagens de notório desequilíbrio psicológico não necessitaria forçosamente de explicitações com a descrição de cenas e situações escatológicas (a erotização de partes do corpo atrofiadas ou amputadas, a zoofilia com uma cabrita, sadomasoquismo, uma puta anã que pratica sexo oral, a cadeirante para cima e para baixo em busca de parceiros sexuais etc.). Salga-se por demais o prato já de per si indigesto servido ao leitor. Questão de dosagem que não deixa de afetar a verossimilhança, mesmo dentro do universo Fantástico da ficção.
Dizem que Sartre teria escrito: “Somos condenados à liberdade”. Entretanto a liberdade traz consigo a angústia frente a responsabilidade pelas escolhas e renúncias. É inerente à condição humana por certo. Mas quando não há uma mente suficientemente moderada para acolher, pesar e pensar seus afetos, há a falta do arbítrio para tomar a rédea do próprio caminho. No universo que vamos criando no decurso do tempo, parece faltar ao nosso psiquismo uma densidade e profundidade de estrutura capaz de sustentar-nos frente às inevitáveis vicissitudes da vida, e partimos para as resoluções imediatistas, para os atos impulsivos e compulsivos, para as alienações amplamente focalizadas neste romance de Luciano Portela. Estamos nos sufocando por “uma colcha de retalhos mental, que corta e castra”.
Livro: Tudo que afeta o movimento – Romance de Luciano Portela. Editora Penalux. Guaratinguetá – SP, 2017, 124 p.