Krishna.Nunes 15/05/2021A longa viagem ao chato planeta dos clichês?Ao contrário do que o título leva a crer, esse não é um livro de ficção científica com ação, viagem e aventura. É um livro sobre relações interpessoais e diversidade. É ficção científica sim, pois o enredo se passa em outros planetas e naves espaciais num futuro distante. Mas esse foi só o cenário que a autora inventou para extrapolar várias questões humanas atuais envolvendo diversidade. Numa uma galáxia repleta de tantas formas de vida e culturas diferentes, fica evidente que essas questões não passam de preconceitos da nossa civilização pouco desenvolvida.
O livro não tem propriamente um protagonista. No comecinho, temos a impressão que a nova tripulante da nave será a personagem principal, só porque existe um pequeno mistério em relação à sua origem, mas logo vemos que isso não se concretiza. São protagonistas todos os tripulantes da nave, cada um a seu tempo.
A ação também não é o ponto alto aqui. Quase nada acontece nesse livro, que se trata literalmente de uma jornada de 9 meses, com algumas paradas, ao longo da qual são apresentados os dramas das personagens. A verdade mesmo é que o livro não tem um enredo principal. A nave e a viagem são apenas justificativas para reunir aquelas pessoas num mesmo ambiente para trocarem experiências. A obra não aborda macro-questões políticas ou socioeconômicas. Imperialismo, capitalismo, escravidão, religião, genocídio, tecnologia e tantos outros pontos já foram bem explorados nos livros de Asimov, Clarke, Herbert, etc. Bem como odisseias espaciais e histórias de cavalaria.
Questões étnicas e de gênero são os temas mais evidentes, porém há outros. Talvez a autora tenha se precipitado ao tentar abraçar tantos temas e não desenvolver nenhum. Provavelmente, ela queria escrever uma história super inclusiva, antes de imaginar que a obra faria sucesso e acabaria se transformando numa trilogia, oferecendo assim muito mais espaço para discussão. Dessa maneira, o primeiro livro acaba sendo uma colcha de retalhos de temas variados, que não se detém de maneira mais aprofundada em nenhum.
Pense numa pauta contemporânea ligada a políticas afirmativas e saúde mental: Transfobia? Xenofobia? Especismo? Capacitismo? Direitos dos robôs? Bullying, racismo, famílias tóxicas, ambientalismo, fake news, protagonismo masculino, ansiedade social, apropriação cultural, solidão, vaidade, individualidade, distúrbios mentais? Escolha uma e a encontrará nessa história.
O desenvolvimento do livro é bem episódico. É como assistir a um seriado em que cada episódio tem um mini-drama a ser resolvido, que não se estenderá aos episódios seguintes. É como um script: a cada capítulo do livro as personagens se deparam com um dilema, lidam com ele de forma rápida e superficial, seguem viagem e assunto encerrado. Todas as atitudes são completamente óbvias e previsíveis.
Também é muito estranho como todas as personagens são compreensivas, éticas, morais e despidas de preconceitos. Cada um que seja tema daquele capítulo sempre terá, no fim, uma palavra de conforto, o suporte e o apoio de todos. "Não deixe isso te abater", "Vai ficar tudo bem", "Você é incrível do jeito que é", "Estamos do seu lado". Isso sempre é seguido por uma refeição reconfortante preparada pelo médico/cozinheiro mais bacana e amigão da galáxia. Tudo bem que é assim que gostaríamos que fosse o mundo, mas ele não é agora e nem será no universo ficcional do livro. Por que, então, nunca há contraponto? Por que todos os membros da tripulação dessa nave, reunidos pelo acaso, são tão completamente desconstruídos e bonzinhos? (Aliás, bonzinhos demais! Até os piratas que interceptam a nave para roubar são bonzinhos, morais e éticos!) Há uma frustrante ausência de conflitos que sirvam de combustível para a história. Tudo dá certo, todo mundo se ama e se respeita. Tudo é utópico, pueril e muito irreal.
Além disso, todas as personagens falam e se comportam o tempo todo como adolescentes. (Note: adolescentes muito bonzinhos, educados e desconstruídos, mas adolescentes.) Até o capitão da nave, que exerce o papel de uma figura paterna para o resto da tripulação, fala e se comporta como um adolescente. Será que a informalidade, a imprudência, a falta de planejamento do futuro são características que a autora imaginou para a evolução da humanidade ou apenas ela não soube escrever algo melhor que isso?
Apesar de tudo, o livro não é de todo ruim, porque é sensível, meigo, bonitinho e fofo. Com direito a unicórnios cor-de-rosa e arco-íris. Se é disso que você gosta, ele pode ser tocante. Talvez seja mais adequado para adolescentes do que para leitores maduros. Acaba sendo sobre amizade, empatia, perda, aceitação e família. Não chega a ser chato, a não ser que o leitor espere uma história épica que simplesmente não é essa.
Um ponto super positivo? A relação de amor entre Jenks, o técnico de informática da nave, e a inteligência artificial Lovey. Isso sim é ficção científica de verdade! Enquanto a maioria das obras imagina uma situação futurista onde os humanos entrarão em guerra com as máquinas ou serão subjugados por elas, aqui temos uma relação legítima de amor e amizade que nasce entre um humano e uma IA, o que leva a muitas reflexões. IAs são pessoas? Deveriam ter o direito de ser "instaladas" num corpo biônico? Que posição deveriam ter na sociedade? Infelizmente, essas reflexões não resultam em desdobramentos no livro e as personagens mais interessantes (Lovey, Dr. Chef e Ohan) são as que menos aparecem.