Luciana Leitora 05/04/2024A gota d'água A literatura é uma atividade que em geral me transmite leveza e me proporciona prazer, dito isso é um desafio ler um livro como temas tão denso e que flerta por vários momentos com a desesperança e a descrença (em si e na sociedade). Dito isso precisei de alguns dias e de uma longa reflexão a respeito do papel da(s) arte(s) na vida, nem sempre vai haver uma sensação de balsamo pelo contrário muitas das vezes a sensação é da ferida dolorida e exposta.
Diante de um livro desafiador como este me peguei pensando por diversos trechos: Por que continuar? Não seria o caso trocar por algo mais leve? No que essa sucessão de infortúnios na vida desse personagem pode acrescentar na minha existência?
A escrita do autor vai descortinar não só o cotidiano de pessoas que só possuem sua força de trabalho a oferecer a sociedade e em troca disso pleitear um lugar menos desconfortável na mesma, mas vai apresentar também as suas mais íntimas reflexões sobre si, sobre essa forma de produção(que no caso aqui se trata de uma sociedade chinesa do século 19, mas poderia bem ser a nossa sociedade na Era da Uberização), e de seus encontros e desencontros sob a perspectiva de um sujeito calado e obstinado - até certo ponto.
A jornada desse protagonista é ao mesmo tempo catastrófica e angustiante, que faz com que o leitor entenda e se enxergue no lugar desse indivíduo que quer a todo custo modificar a sua realidade desfavorável, pois é justamente nesse ponto em que a frustração toma conta do leitor, a vida de Xiangzi não se torna mais fácil por que ele, é determinado, acorda cedo, não se distrai com banalidades. O traço característico desse excepcional livro é contrapor uma ideia tão arraigada de meritocracia que soa como desesperança. E nesse ponto o leitor sente a dor do personagem ao se dar conta de sua impotência frente aos desafios de uma sociedade que cria e manipula regras cruéis que beneficia alguns em detrimento da manutenção das desigualdades.
“Quando a noite chegava, deitava a cabeça no chão e tinha a sensação de que se nunca mais acordasse, não seria má ideia.” pág. 29
É como se enfim pudéssemos entender a vida pela perspectiva de quem se entrega, perde as esperanças.
“Para as pessoas pobres, na decisão de amar pesava a questão financeira,“a semente do amor” só floresce entre a gente rica.” pág. 221
Após refletir por alguns dias cheguei a conclusão que é desse desconforto que se pode tirar o valor presente nessa experiência literária bem como na louca e mágica experiência de viver (que nem sempre nos oferece sensações prazerosas) o desconforto que nos coloca em xeque e questiona se vamos permanecer e nos conformar com o que está posto ou se vamos nos derramar com a gota d’água que faz o copo transbordar.
“Não era mais um ser humano pensante. Mesmo que matasse alguém, não poderia ser responsabilizado. Ele não tinha mais esperança, deixou-se levar pela decadência, à míngua num buraco sem fundo.” pág. 252
Se vivemos numa sociedade desigual e estamos no lugar do desconforto, o que vamos fazer ao se dar conta disso? Aceitar que tudo já está delimitado e se entregar a desesperança, ou entender que nessa trama que nos conforma pode existir brechas por onde escapamos e nos tornarmos o fio solto que faz desse bordado único e por isso especial.
Uma obra de arte primorosa mas que requer um certo distanciamento e uma criteriosa reflexão para ser devidamente admirada. Não recomendo para qualquer um por entender que certos gatilhos precisam de tempo e maturação para serem elaborados e superados ou não…