Pri | @biblio.faga 08/12/2020
Não é gratuito quando dizem que a primeira impressão é a que fica: as páginas introdutórias deixam evidente o tom inusitado e a gritante originalidade do escritor Paul Beatty – merecidamente recompensado com o prêmio Man Booker Prize no ano de 2016.
O livro começa com “Eu”, o protagonista do romance, fumando maconha enquanto é julgado pela Suprema Corte Americana. Descobre-se que Eu fora acusado de restabelecer a escravidão e a segregação racial em Dickens, sua cidade natal, uma espécie de "gueto agrário" na periferia de Los Angeles, na Califórnia.
Se não bastasse o enredo inusitado, embora a obra trate de temas “pesados” e delicados, como preconceito, raça, identidade e pertencimento, a abordagem é feita de uma forma “pouco séria” e, para alguns, até mesmo politicamente incorreta, já que carregada de ironia e de um humor ácido e corrosivo. Extremamente crítico e sarcástico, o escritor brinca com a ideia do fim do racismo em “mundo pós-racial”, satirizando descaradamente os costumes norte-americanos.
E justamente por isso, a narrativa é permeada por citações, alusões a fatos e a personagens históricos, clássicos literários e a itens da cultura pop dos Estados Unidos. Escolha que, a meu ver, ao mesmo tempo que enriquece o livro, pode também o enfraquecer, tirando um pouco da sua universalidade e exigindo mais de comprometimento do leitor.
O excesso de referências, às vezes, pode causar a sensação de que estamos perdemos alguns detalhes ou fragmentar a leitura com pausas para pesquisa – no entanto, na minha opinião, muitas das menções possam ser depreendias e compreendidas pelo contexto em que estão inseridas e não prejudicaram a experiência de leitura, mas sim instigam a pesquisar mais sobre a história do EUA.
“O vendido” é um livro inteligente, exigente, desconfortável, incômodo e muitíssimo rico em seus detalhes; a sua história caótica, sarcástica e provocativa mostra como somos influenciados pelo meio social e como o racismo está enraizado na sociedade, embora disfarçado em condutas veladas como, por exemplo, o humor.
Com certeza, foi uma experiência única e desafiadora.
Recomendadíssimo!
~ Quotes:
“Agora vejo que a única situação em que um negro não sente culpa é quando ele realmente fez alguma coisa de errado, porque assim a gente se livra da dissonância cognitiva de ser negro e inocente, e de certo modo a perspectiva de ir para a cadeia se torna um alívio” (p. 23/24)
“E o que são cidades na verdade além de placas e limites arbitrários?” (p. 99)
“Esse é o problema da história, pensamos nela como um livro - achamos que podemos virar a página e ir em frente. Mas a história não é o papel em que está impressa. Ela é memória, e memória é tempo, emoções e música. A história são as coisas que ficam com você” (p. 127)
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