Mr. Jonas 22/05/2023
O Retrato de Erico Verissimo
Em O Retrato, segunda parte da trilogia O tempo e o vento, temos a continuidade da saga da família Terra Cambará, sempre envolvida com a luta política no Rio Grande do Sul, ora palco sangrento de guerras civis, ora tendo ativa participação nas guerras do Prata. O pano de fundo central desta parte são os anos finais do século XIX e as duas primeiras décadas do século xx, do governo do paulista Campos Sales à presidência do mineiro Venceslau Brás. A presença de um paulista e de um mineiro não foi acidental, mas produto do domínio exercido pelos dois estados na cena política nacional: era a chamada ?política café com leite?. A República já tinha se consolidado ? não se falava ou especulava sobre uma possível restauração monárquica. Agora, no horizonte político estavam presentes as divergências sobre a forma de gerir a coisa pública e o espaço reservado à oposição.
Rodrigo Terra Cambará é um republicano insatisfeito, um desiludido do novo regime. Porém, não tem clareza sobre a forma de agir politicamente em defesa de seus princípios liberais. Simpatiza com algumas figuras dominantes ? como é o caso do senador Pinheiro domina o Rio Grande do Sul desde 1889, os castilhistas. Depois da morte de seu líder, Júlio de Castilhos, em 1903, Borges de Medeiros assumiu o governo e o manteve até 1928, eliminando qualquer espaço para manifestação da oposição por via legal, sempre lançando mão da Constituição gaúcha de 1891, eivada de positivismo do começo ao fim.
As eleições, como vemos em O Retrato, eram uma farsa, não havia voto secreto e os eleitores eram coagidos a sufragar sempre o candidato da situação. Quando isso não ocorria, a urna da seção eleitoral era considerada nula e a manifestação do eleitorado, solenemente ignorada. Dessa forma, os caudilhos locais se perpetuaram no poder e não deram à oposição outro espaço de manifestação a não ser a revolta aberta, armada, a rebelião, como a ocorrida entre 1893 e 1895, na chamada Revolução Federalista, brevemente mencionada por alguns personagens do romance.
Santa Fé é um microcosmo do Rio Grande. Titi Trindade é a versão local de Borges de
Medeiros: despoticamente inibe as manifestações de seus opositores e mantém com mão de ferro seu poder, espalhando terror por onde passa. O funcionalismo municipal, o jornal local e a polícia são instrumentos usados pelo tiranete para se perpetuar no poder. Nem as famílias economicamente poderosas do lugar, como os Terra Cambará, escapam de seu arbítrio. Mesmo estes, quando se posicionam, por qualquer motivo, contra seus caprichos, também sofrem perseguições. Não há adversários políticos mas inimigos, e com inimigos não se convive; eliminam-se.
Em meio à violência e ao despotismo político estão os imigrantes italianos e alemães.
Muitos deles vivem isolados em colônias, distantes da sede do município, onde mantêm seus costumes (língua, festas e hábitos), mas também são vítimas do coronelismo, obrigados a obedecer ao que é imposto por Trindade, especialmente no momento das eleições ? caso contrário, também seriam perseguidos, sem ter a quem recorrer.
No desenho das classes sociais, temos os pequeno-burgueses de Santa Fé, que necessitam para sobreviver da proteção de algum potentado local ? e terão de servi-lo docilmente ?, sem nenhuma perspectiva de autonomia econômica ou política. Já os pobres e miseráveis não fazem parte da sociedade, não são considerados cidadãos: vivem em bairros imundos ? desprovidos de quaisquer benefícios ?, nas eleições são obrigados a votar nos candidatos do coronel e são úteis somente para serem explorados e terem suas filhas defloradas pelos filhos dos latifundiários. Um corpo estranho ? porque não constituem habitantes permanentes da cidade ? são os oficiais militares, provenientes de diversos estados do Brasil. Não podiam se envolver na política local, mas acabam participando dos embates no campo das ideias. Ou defendem a ditadura positivista, tal qual o coronel Jairo ? e a referência é Augusto Comte ?, ou a ditadura militar ? tendo raízes no pensamento de extrema direita da França e da Alemanha ?, como o capitão Rubim. Esses oficiais divergem, polemizam com ardor não sobre as vantagens da democracia, mas sobre qual tipo de ditadura seria mais adequada ao Brasil.
Santa Fé, como qualquer cidade gaúcha da época, é uma sociedade machista. Às mulheres, desde o nascimento, está reservado um lugar preciso na comunidade: devem obrigatoriamente se casar, parir filhos, cuidar dos afazeres domésticos e obedecer a seus maridos. Não há nenhum espaço de independência para elas: devem ser uma pálida sombra de seus maridos e viver em função deles.
O Retrato tem como personagem principal Rodrigo Terra Cambará, um reformador, que deseja ardentemente modernizar Santa Fé, sempre da perspectiva da classe dominante: as propostas são suas, não foram produto de uma consulta à comunidade ou de alguma forma de diálogo mesmo que com seus amigos. Sua visão de mundo encontra campo fértil quando da vitória dos gaúchos na Revolução de 1930 e da ascensão de Getulio Vargas à presidência da República ? o que, como informa o autor no início e no final do volume, acaba levando Rodrigo para a capital federal, o Rio de Janeiro, onde, simbolicamente, amarra seus cavalos no obelisco da avenida Rio Branco.
Erico Verissimo contrapôs a vida na cidade ? centrada na residência da família
Cambará, o Sobrado ? ao Angico, a estância da família. Licurgo, o pai, e Toríbio, o irmão,
são felizes quando permanecem no campo, onde mantêm o modo tradicional de vida
gaúcho. Rodrigo, não. Sempre foi o homem da modernidade, da grande cidade, que estava
sintonizado com a última moda europeia no vestir e no comer. Mas não só: defendia
enfaticamente a instalação da energia elétrica na cidade, símbolo de progresso no início do
século XX.
O progresso traz consigo as relações capitalistas de produção e estabelece um novo padrão de relações sociais: confronta-se a modernidade com o paternalismo dos estancieiros. E os três filhos homens de Rodrigo representam essa virada, em 1945: Eduardo, o filho mais velho, é o porta-voz incômodo da luta de classes; Jango está ligado à terra ? mantendo a tradição da família ?, e Floriano é um intelectual que compreende a crise do velho modelo de dominação mas não tem nenhum entusiasmo pelo marxismo, tal qual Eduardo, ou pela pecuária, como Jango. Representa a indefinição do novo, que não era só dele, mas de uma sociedade que estava em declínio e de outra que estava sendo gestada.
A doença terminal de Rodrigo Cambará não passa de uma metáfora. Com ele morria a Santa Fé que esteve com o civilismo de Rui Barbosa, em 1910, e vinte anos depois com Getulio Vargas, na Aliança Liberal. Paradoxalmente, foram dos pampas à capital federal, do interior para o litoral, e de lá lançaram as bases do moderno Estado brasileiro. Mas na caminhada do Rio Grande para o Rio de Janeiro, acabaram perdendo suas raízes. Maria Valéria, que sempre permaneceu no Sobrado, desde os duros tempos da Revolução Federalista até a queda de Getulio Vargas, resume o dilema dos Cambará, em 1945, ao acender uma vela e fazer uma promessa para o Negrinho do Pastoreio: ?É pr?aquela gente achar o que perdeu?.
Em O Retrato, Erico Verissimo realiza algo raro na literatura brasileira: o romance histórico. Combina com maestria a história do Rio Grande do Sul com o gênero romance, sem que nenhuma das construções fique prejudicada. Quando apresenta um personagem histórico, o faz de tal forma que sua entrada no livro é absorvida naturalmente na estrutura do romance: assim, para o leitor nada distingue Rodrigo Cambará do senador Pinheiro Machado. Além da incorporação da história, Verissimo insere a geografia da região dos pampas como parte do livro. Como fala um personagem: ?A culpa é do vento. A gente fica meio fora de si. É essa maldita ventania?. E o leitor, de tal forma integrado com o livro, sente o minuano soprando...
A literatura de Erico Verissimo, e isto está presente em O Retrato, não faz concessão ao romance engajado, ao panfletarismo estéril. Deixa que o leitor tire suas próprias conclusões, julgue os personagens ? a maioria deles absolutamente distinta do herói da literatura do realismo socialista, tão em moda na época. Seus personagens têm dúvidas, são contraditórios, heróis e bandidos ao mesmo tempo. Não são criações de tipos ideais, distantes do concreto real, mas filhos e produtos do seu tempo e de suas contradições.
Depois de lermos a última página de O Retrato, ficamos com saudades dos personagens e de Santa Fé: de Rodrigo Terra Cambará e seu voluntarismo, do realismo trágico de Maria Valéria, do positivismo ingênuo do coronel Jairo, do anarquismo inconsequente do pintor espanhol Pepe García, de Toríbio e sua relação de amor com a vida e o trabalho no Angico. Esta é uma das qualidades da literatura de Erico Verissimo: desenha personagens, descreve cenas, cria situações que não só prendem a atenção do leitor como vão paulatinamente transformando o leitor em partícipe da história, em cúmplice do escritor.
PREFÁCIO:
Marco Antonio Villa
Doutor em história social pela Universidade de São Paulo e professor do
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos