spoiler visualizarDantonM 16/07/2020
Uma lição de moral e uma jornada pela imprensa e cidade do Rio de Janeiro em 1905
Começo essa resenha com algo que observei ao longo da minha (muito breve) jornada pela literatura clássica brasileira: os livros que eu li começam bons, aí fica uma chatice, vontade de morrer, lento, sem desenvolvimento e chega nos últimos capítulos a história fica ÓTIMA e você termina o livro pensando "nossa, que maravilhoso". Lima Barreto, Machado de Assis, Graciliano Ramos, todos fizeram isso comigo!
Vou fingir que os momentos em que dormi com o livro na minha cara não aconteceram e vamos aos aprendizados que tirei de Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
Nessa obra, vamos acompanhar a trajetória de Isaías, um rapaz do interior do Espírito Santo que vai morar no Rio de Janeiro no começo do século XX. Inspirado por sonhos e fantasias de ser doutor, Isaías ambiciona se tornar aluno de medicina e conseguir um trabalho na então capital brasileira graças ao seu contato com um Coronel de sua cidade que ajudou a eleger um deputado. Isaías parte carregando consigo uma carta do tal Coronel indicando-o ao deputado Castro e cheio de esperanças das surpresas que a vida metropolitana havia de proporcioná-lo.
Já na sua chegada podemos perceber que sua nova vida carioca não tem tanto glamour quanto em sua imaginação. Isaías logo descreve as ruas a sua primeira vista como "feias, estreitas, lamacentas, marginadas de casas sujas e sem beleza alguma" e é assim também que temos o primeiro vislumbre de como será sua jornada pelo Rio. Nosso personagem logo se estabelece em um hotel e faz suas primeiras amizades. Inclusive, como a galera faz amigo de uma maneira muito aleatória em 1905 né? Os diálogos também são sempre muito peculiares, o português que eles usam quase não se assemelha ao que falamos...
Depois de alguns (vários) dias tentando falar com o deputado Castro, Isaías finalmente recebe desse a resposta de que seria difícil arranjar-lhe um trabalho mas alimenta suas esperanças assim mesmo! Tais esperanças não duram muito e logo são soterradas nos trilhos do bonde em que Isaías embarca ao sair da casa do deputado - ele ali lê no jornal um artigo anunciando a partida do deputado para São Paulo. Desiludido e desmotivado, Isaías tenta conseguir um (1) emprego e quando é recusado fica desesperado real oficial! Seu dinheiro está acabando e ele ainda por cima chama um policial de IMBECIL ao prestar depoimento sobre um assalto no hotel, acabando na cadeia.
É nessa cena do interrogatório inclusive que surge pela primeira vez um dos elementos mais pesados do livro: o racismo com que Isaías é tratado por ser mulato. São vários os momentos em que ele descreve os olhares recebidos e num dos parágrafos mais tristes do livro todo afirma:
"Percebi que o espantava muito o dizer-lhe que tivera mãe, que nascera num ambiente familiar e que me educara. [...] Ter eu mãe que me ensinasse a comer com o garfo, isso era excepcional. Só atinei com esse íntimo pensamento mais tarde. Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são todos iguais, mais iguais ainda que os cães de suas chácaras. Os homens são uns malandros, planistas, parlapatões quando aprendem alguma coisa, fósforo dos politicões; as mulheres (a noção, aí é mais simples) são naturalmente fêmeas."
Depois de perder tudo, Isaís consegue por intermédio de um amigo trabalho como "contínuo" (uma espécie de faz-tudo) no jornal O Globo e aí se deixa seduzir pelos encantos da imprensa, "o quarto poder da república" adotando para si o estilo de vida dos jornalistas, apesar de ocupar um posto bem inferior. Nesses capítulos é que conhecemos como funcionavam os jornais do Rio naquela época: uma palhaçada, sinceramente kkkk o pessoal chegava a inventar histórias pra ganhar leitores. Todo mundo se odiava na redação d'O Globo. Chamo atenção aqui para um personagem: Deodoro Ramalho, um jovem branco aluno de medicina de boa família que ganha facilmente a simpatia dos funcionários do jornal "por seus olhos azuis e histórico colegial" e publica quase diariamente. Deodoro é a representação do que Isaías queria para sua vida mas não consegue, por falta de coragem, incentivo e pelo preconceito que sofre.
Os parágrafos se arrastam por algumas dezenas de páginas narrando histórias e mais histórias do jornal. Uma das poucas que achei relevante envolve um diálogo acontecido na redação, durante o qual debate-se a necessidade da moral para a vida em sociedade:
"-[...] Eu julgo a moral impossível!
-Por quê?
-Porque é feita para diminuir em nós o que é de mais estrutural e de mais profundo: a individualidade, o prazer, os instintos!
-Mas a sociedade precisa repousar nela; senão... - disse Leporace
-Não há dúvida!
-Então concordas que, em face da própria sociedade, nós nos devemos esforçar por justificar as regras morais, manter sempre em pé os seus preceitos.
-Mas se têm sido inúteis todos os esforços das religiões - a força mais poderosa para uma modificação inteira do indivíduo, como havemos de consegui-lo? Demais... demais, para quê?
-Para a eternidade da espécie - falou com ênfase Leporace.
-Valeria a pena? - retrucou Gregórovitch.
E todos se calaram sem achar de pronto uma resposta cabal."
Bem irônico, vindo de homens brancos que tentam imitar ao máximo o padrão de vida europeu...
Pois bem, depois de trabalhar dois anos n'O Globo, uma galera acaba saindo e Isaías consegue um posto de redator, surpreendendo o diretor do jornal que nunca nem tinha pensado que o mulatinho tinha algum talento. Nessa reviravolta que acontece nas últimas páginas, Isaías ganha a amizade do diretor e passa a comparecer a eventos chiquérrimos com pessoas chiquérrimas e viver uma vida chiquérrima, na maioria das vezes ganhando dinheiro do diretor para aproveitar. Até que ele se dá conta ao final do livro que ele não se sente bem se aproveitando da bondade alheia e que a vida que levava, apesar de boa não era a que ele desejava para si... Ser sempre o servo de outra pessoa não o satisfazia.
Foi com essa reflexão que eu fechei o livro e percebi a indireta que meu orientador da Embrapa lançou ao me dar de presente a obra. Ganhei esse livro em 2017 num amigo secreto do grupo de pesquisa do qual participava na Embrapa. Quem me tirou foi meu orientador, o Dr. Fábio que sabia das minhas intenções em sair da cidade e começar outra faculdade longe dali. Acabei de contar para minhas amigas - antigas colegas de laboratório - esse devaneio, que ele me deu esse livro de propósito para de certa forma me motivar e elas concordaram e lembraram de outros momentos em que ele nos forçava a darmos nosso melhor no trabalho...
Tendo sido essa a intenção ou não, foi uma leitura bonita pelo significado que teve para mim e pelas reflexões que o livro apresenta, mas não vou ser falso, ler obras clássicas brasileiras pode ser um pé no saco às vezes.