Alê | @alexandrejjr 04/09/2022
Sob as frestas do silêncio
De quantas maneiras o silêncio cabe em palavras?
Se depender de Adriana Lisboa, muitas. “Sinfonia em branco”, romance formidável lançado em 2001, apresenta aos leitores uma tragédia familiar inesquecível. Em pouco mais de 300 páginas, Adriana faz das palavras, esses seres abstratos que alimentam a imaginação, uma experiência intransferível.
Clarice e Maria Inês. Mais do que irmãs e personagens, elas são os fios condutores desta história. É através delas e de uma narração de beleza ímpar que nós, leitores, temos a oportunidade de sentir. Sim, sentir, pois é impossível não ser atravessado por sentimentos da mais tenra humanidade a cada novo capítulo. Não há possibilidade de inércia emocional para quem pegar este livro.
Possibilidades. Sim, esse é um dos temas que perpassam a narrativa de “Sinfonia em branco”, que se dá em dois planos, um no passado e um no presente. Mas o tempo é um espelho, e devemos cuidar do reflexo. Nesta história, por exemplo, ele fere, marca, atormenta. E com uma maestria peculiar, Adriana Lisboa conduz a tragédia de sua narrativa através do silêncio. Ou melhor: sob as frestas que o silêncio produz. Afinal, o acontecimento chave do romance - o abuso sexual de uma das irmãs pelo pai - é construído aos poucos, com pequenas pistas até ser revelado por completo, desnudado em sua natureza inconcebível. Todos os desdobramentos, todos os segredos, são consequências dele.
Há muito a se destacar em “Sinfonia em branco”. A linguagem? Impecável em sua proposta de aparente simplicidade, que na verdade deve ter sido arduamente trabalhada para que se chegasse em tal resultado, como de costume em escritores muito acima da média. A construção das personagens? Impressionante, como se pudéssemos sentir os cortes no pulso de Clarice ou o peso abstrato da culpa presente em Maria Inês ao carregar consigo o segredo de uma vida. Aliás, é difícil dizer que as personagens secundárias, como o pai das irmãs, Afonso Olímpio, o monstro comum que atormenta muitas casas no Brasil de sempre, ou Otacília, a também recorrente resignada mãe das meninas, sejam menores dentro do livro. Nem mesmo o apaixonado Tomás, peça importante da ligação final entre as irmãs, e o indiferente João Miguel, marido de uma delas, são esquecidos. Adriana Lisboa faz de suas personagens alicerces de uma narrativa que, através de uma natural poesia em prosa, encanta os leitores.
Fica fácil entender, após terminada a leitura, por que “Sinfonia em branco”, segundo romance da escritora, foi vencedor do Prêmio Saramago em 2003. Livros deste porte, com a ambição de transcender a condição de histórias, são raridades cada vez mais difíceis de achar em um mundo repleto de narrativas. Narrativas que muitas vezes esquecem de mostrar a beleza que as palavras podem conter. Adriana Lisboa não. Através da densidade psicológica de suas personagens, marcadas por um trauma revoltante, e das metáforas que costuram o romance com delicadeza, olhar e sensibilidade únicos, Adriana faz de “Sinfonia em branco” muito mais que um livro. E dá aos seus leitores a oportunidade de exercer uma das qualidades mais essenciais - e em falta atualmente - que nos torna humanos: a alteridade, a possibilidade de estar no lugar do outro.