raposisses 13/12/2016
Um livro de surpresas
Quatro Soldados chegou em minhas mãos por meio de vários equívocos. Primeiro, pensei que – como o título do livro sugeria – seria uma história “de cavalaria”, sobre o exército. Não sou exatamente a maior fã desse gênero, então deixei o livro de lado. Depois, pessoas que já tinham lido Quatro Soldados me ofereceram suas opiniões: apesar de ter soldados como protagonistas, o livro não é focado nesse ponto, mas sim coloca mais importância nos aspectos de realismo mágico e folclore brasileiro. Aí sim o livro despertou meu interesse: “realismo mágico” e “folclore” são as palavras mágicas para me fazer ler qualquer coisa. Logo, finalmente peguei Quatro Soldados para ler…
…e infelizmente, descobri que essas informações passadas a mim também não estavam certas: enquanto o livro apresenta sim esses dois aspectos, eles são mais detalhes do plano de fundo, não chegam nem perto de ser o foco principal do livro. Em um primeiro momento eu até pensei em ficar decepcionada, se não fosse por um porém: sim, Quatro Soldados não é sobre realismo mágico, ou folclore brasileiro, ou a vida de soldados, ou o exército português em um Brasil colônia. Mas é sobre algo tão interessante quanto: Quatro Soldados é sobre a história.
Falando assim parece uma coisa meio vaga, meio “trabalho inventado no último minuto”, mas é isso mesmo: Quatro Soldados é sobre contar histórias, e ouví-las. Não importa se é uma história real ou fictícia, não importa se a história está sendo passado oralmente ou por escrita… ela sempre mudará vidas. Há um ótimo uso de justaposição do oral vs escrito no livro, com os personagens de pano de fundo – os moradores das vilas, os trabalhadores dos casarões – sendo todos afetados por histórias orais no decorrer do livro; seja por meio de folclore, lendas urbanas, superstições, ou fofocas. Já os personagens principais – homens da elite e, portanto, letrados – são afetados, principalmente, pela palavra escrita.
Essa justaposição não é o grande foco do livro, mas foi um detalhe que me agradou bastante – e não me oporia a um futuro livro do autor com esse tema principal. Mas em Quatro Soldados, os personagens secundários são apenas isso: secundários. Logo, apesar da “população geral” afetada por histórias orais servir como um ótimo ponto de construção de mundo, é a relação dos personagens principais com a literatura que é o tema mais estudado no livro.
Quatro Soldados não tem uma narrativa contínua como a maioria dos romances; o livro é na verdade uma coleção de quatro novelas, conectadas entre si pelos personagens e tempo/lugar em comum. Em cada uma das quatro histórias, os personagens discutem os méritos da leitura: a leitura de livros sobre “histórias irreais”, “apenas para entretenimento”, valeria mesmo a pena? Em certa cena na primeira novela, o personagem principal se encontra em uma biblioteca particular, à disposição de todos os livros já lançados em português, mas é proibido pelo dono da biblioteca de ler os livros de ficção, devendo ficar apenas na secção de não-ficção. “Há muitos males criados pelo Homem, contudo nenhum se iguala em vilezas a estes romances de ficção”. Já na terceira novela, uma esposa de mercador é julgada como surpreendentemente forte, algo que “aprendeu” com todos os romances trágicos que lê.
A distinção entre o “real” e “irreal” é um ponto de discussão ao longo de todo o livro – as missões designadas aos soldados em cada novela são justamente relacionadas a mistérios, monstros e lugares perdidos que “não podem ser reais” -, e as discussões literárias espalhadas pelo livro são quase uma espécie de “base teórica” para a “experiência prática” das missões. Essa discussão é desenvolvida até a credibilidade do próprio livro Quatro Soldados ser posta em questão; afinal, o livro é narrado por um narrador misterioso que conversa diretamente com o leitor, e em certo momento do livro o leitor é obrigado a levantar a dúvida: seria tudo isso que lemos até agora acontecimentos reais (ou pelo menos reais para o mundo dos personagens), ou apenas divagações do narrador?
Quatro Soldados é o primeiro romance do autor – Samir Machado já organizou coletâneas, e escreveu uma novela, mas Quatro Soldados é seu primeiro livro -, e um livro interessantíssimo de ser analisado. É um livro ambientado no Brasil colônia, e em sua superfície é apenas uma coleção de quatro novelas de aventura e mistério; mas em meio à ação, o autor faz um comentário extremamente engajado sobre temas atuais. Nessa resenha falei só sobre literatura e a questão do real vs irreal, que foram realmente os temas mais desenvolvidos do livro, mas pode-se ainda oferecer comentários sobre diversos outros temas, desde política até religião, passando por sexualidade e preconceitos. E se não bastasse a riqueza temática, é tudo amarrado por uma escrita encantadora. Samir Machado é certamente um autor para ser acompanhado, e mal posso esperar para ler seu segundo livro, Homens Elegantes.
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