Coruja 04/04/2011O ano é 1914. Na noite de 28 de junho, o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, e sua esposa Sophie, são envenenados durante uma visita que faziam à Sérvia.
A Áustria declara guerra à Sérvia. A Alemanha se junta ao império. A Sérvia faz parte da aliança de povos eslavos, de forma que a Rússia vem em seu socorro. A Alemanha declara guerra à Rússia. A França, que tem um tratado com os russos, entra no conflito. Um por um, os países europeus vão se metendo na história, até que todos estejam mergulhados naquela que conhecemos como a Primeira Guerra Mundial.
O irônico de tudo isso é que a desculpa para começá-la foi a morte de um pacifista.
Quem aí se lembra das lições de História deve ter percebido qualquer coisa meio discordante nessa introdução. Afinal de contas, o arquiduque e sua esposa morreram baleados naquela tarde de verão que impulsionaria a Europa no conflito mais sangrento de sua memória - sempre nos impressionamos com os números do Holocausto, mas a verdade é que a Primeira Guerra foi muito mais traumática para o continente europeu como um todo.
Deixemos, contudo, as trincheiras para outro dia. Hoje vamos falar de realidades históricas alternativas e "Clankers" versus "Darwinistas".
A morte do arquiduque é apenas o início dos eventos narrados em Leviathan, de Scott Westerfeld. No mundo alternativo do livro, a divisão que levou à guerra tem raízes ainda mais profundas que afinidades étnicas e tratados diplomáticos: de um lado estão os 'clankers', cujo desenvolvimento é fundamentado na tecnologia mecânica; de outro, estão os 'darwinistas', cujas máquinas foram trocadas por poderosas bestas geneticamentes modificadas, das quais o Leviathan do título é um exemplo - um 'avião' de combate que tem a aparência de uma baleia (é uma baleia... e mais um zilhão de criaturas) que flutua graças a um complicado sistema de propulsão a hidrogênio.
Existe assim uma discussão bem interessante no livro - ainda que não muito aprofundada - sobre a idéia de desenvolvimento e tecnologia: metal ou carne? Os clankers acreditam que os darwinistas estão brincando de Deus, que suas bestas são amaldiçoadas, sem alma, que tudo aquilo é uma depravação sem limites do poder divino de criação. Os darwinistas, por outro lado, observam que usando seus animais geneticamente modificados, eles conseguem manter um desenvolvimento totalmente auto-sustentável (fiquei de queixo caído com a explicação do funcionamento do Leviathan, que envolve um inteiro ecossistema complementar) e sem poluição.
Esse debate, contudo, não é levado bastante a fundo - não sei se por causa do público para o qual o livro é voltado, se pela idade dos protagonistas (tanto Alek quanto Deryn não têm mais de dezesseis anos) ou se pelo fato de esse ser apenas o primeiro livro da trilogia - mas está lá, implícito.
Leviathan é contado sob dois pontos de vista. O primeiro é o do príncipe Aleksander, filho do arquiduque assassinado, que precisa fugir da Áustria logo ao início da história para não ser ele mesmo eliminado da linha sucessória. O segundo é de Deryn Sharp, uma escocesa que ama voar e que para realizar seu sonho de estar acima das nuvens, se disfarça de homem e entra para a Força Aérea a bordo do Leviathan (e passa o tempo inteiro praguejando, porque, aparentemente, é só isso que garotos fazem...).
De uma forma ou de outra, ambos têm o potencial para mudar o rumo do conflito que começa a se configurar nesse livro - ainda que não tenham consciência disso a princípio; os dois sofrem de uma ingenuidade quase desesperadora. Claro que seus caminhos acabarão por se cruzar - para melhor ou pior - e, diante dos acontecimentos que se sucedem, mais cedo ou mais tarde, serão forçados a amadurecer.
Westerfeld já é razoavelmente conhecido e celebrado aqui no Brasil por conta de outras séries. Não li nenhuma delas ainda - Leviathan foi o primeiro livro do autor com que tive contato, e gostei bastante do estilo dele. Com sorte, ainda veremos esse livro também em português; será um livro que recomendarei a um monte de gente...
Só para fazer inveja... minha edição é em hardcover, linda, linda... Quando comprei, no final do ano passado, ela estava em promoção, mais barata que a versão em brochura.
Além do enredo, que é bem amarrado e desenvolvido, e dos personagens cativantes (posso montar um fã-clube para o Conde Volger? Aposto que se a Régis ler esse livro, vai lembrar do Jarno e se juntará a mim!), as ilustrações de Keith Thompson são de encher os olhos - e ajudam a nos ambientar melhor na história.
Como já disse antes, o livro é o primeiro de uma trilogia, composta ainda de Behemot e Goliath, este último com publicação prevista para setembro desse ano.
A despeito da minha reticência com continuações nos últimos tempos, farei absoluta questão de ler essa história até o final. Afinal, como todo mundo que acompanha o Coruja sabe, sou louquinha por História Alternativa, Dimensões Paralelas e coisas do tipo. E Leviathan é um prato cheio com todos os detalhes que gosto numa história.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)