spoiler visualizarPaulo 23/08/2022
O poeta não morreu: despediu-se para entrar na eternidade.
Trata-se de uma prosa poética sinfônica, dividida em quatro partes, como uma sinfonia. Cada uma das partes corresponde aos movimentos da sinfonia clássica.
A primeira delas, intitulada “Água - A chegada”, narra a viagem de Virgílio em um navio, da Grécia à cidade de Brindisi. O poeta já se encontra muito doente, aos 51 anos, tendo escarros e ataques de tosse, e traz consigo uma mala com o manuscrito da “Eneida”.
O desembarque na cidade portuária é muito tumultuado: Virgílio é carregado em uma liteira por escravos por ruelas apinhadas de gente e as pessoas não o reconhecem como grande poeta, exceto um jovem guia, chamado Lisânias, que o conduz com grande alegria. No trajeto até o palácio onde se encontra César (Otaviano Augusto), o cortejo passa por um beco íngreme e Virgílio é difamado pelas mulheres que habitam o local miserável.
Há excelentes reflexões sobre a vida no monólogo interior do poeta.
“É emprestado o nome que levamos. É emprestado o pão que comemos. Nós mesmos somos emprestados. Postos nus no desconhecido. E somente quem se despojar de todo o ouropel emprestado verá o propósito, o chamado definitivo para unir-se com seu derradeiro nome.”
Ao chegar finalmente aos seus aposentos reais, o jovem guia permanece um bom tempo com Virgílio, que depois o dispensa e finalmente adormece.
Na segunda parte, intitulada “Fogo - A descida”, acompanhamos uma espécie de sonho de Virgílio. O poeta observa dois homens e uma mulher, todos bêbados, discutindo na rua. Relembra Plócia, seu grande amor e reencontra em seu quarto o guia Lisânias. Decide queimar o manuscrito da Eneida.
Virgilio vive uma espécie de inferno astral, repensa a sua vida, e percebe que ela foi em vão. Sua poesia, em seu entender, visava somente a beleza, não a verdade. A proximidade da morte torna-o angustiado e reflexivo: “só quem toma a morte sobre si poderá fechar o ciclo nesta terra; só quem olha a morte nos olhos poderá olhar para o nada sem cegar.”
Uma vida voltada para o acúmulo de riquezas por meio de amigos poderosos e um poema para enaltecer a grandeza estatal de Roma: isso foi o resultado de toda sua vida. Virgílio percebeu, ao fazer a anamnese da sua vida, que ela não fazia nenhum sentido.
O poeta percebe as limitações da arte em captar a transcendência (“a vida humana recebe a bênção e a maldição das imagens; só através da imaginação ela é capaz de compreender a si mesma”) e reflete que a função do artista seria captar a verdade (“é dever de todo artista o conhecimento de si mesmo, encontrando e proferindo a verdade”). Segundo Virgílio, “só nos deveres que o ser humano assume para si mesmo repousa também seu conhecimento redentor; e, sem dever, não há redenção humana.”
“Terra - a expectativa” é o título da terceira parte, na qual Virgílio recebe a visita dos amigos Plócio e Lúcio, que tentam dissuadir o poeta da ideia de queimar o manuscrito da Eneida. O poeta diz a eles que a verdade é mais importante do que a beleza, em uma crítica ao esteticismo da arte. Virgílio é examinado pelo médico Carondas e, em delírio, encontra-se novamente com sua amada Plócia. O poeta conversa com o próprio imperador, Otaviano Augusto, que o convence a desistir de queimar o poema. Ao final, Virgílio elabora adendos ao seu testamento, deixa bens aos seus escravos e lega o manuscrito original do poema a Plócio e Lúcio. Finalmente, Virgílio falece.
O poeta critica o esteticismo e reafirma a função ética da arte: “quem elogia um verso como tal, sem se preocupar com a realidade de seu significado, confunde a coisa criada com quem a cria, tornando-se consciente ou inconscientemente culpado pela quebra do juramento que nega ou destrói a realidade, sendo 🤬 #$%!& mplice de todos os perjúrios"; “A beleza não pode viver sem a aprovação do aplauso; a verdade está fechada para aplausos.”
Broch desenvolve a crítica que Platão realiza na República, segundo a qual a arte seria uma imitação inferior da realidade. Desenvolvendo esse raciocínio, o poeta define a realidade como o amor. “Os deuses agraciaram a humanidade com o amor para aliviar o anseio pelo mero cio, e a quem partilhar dessa graça será concedido ver a realidade; já não será mais um mero hóspede da própria consciência, onde era mantido.”
Em seus delírios moribundos, Virgílio antevê a vinda de Cristo: “quando na cadeia dos deuses aparece aquele a quem a Virgem deu à luz: ele é o primeiro que não se rebela; e entra no Pai, e o Pai entra nele; eles estão unidos em Espírito, para sempre três em um.” O poeta explica a Augusto que há dois reinos, um estatal e outro espiritual.
A obra é do artista ou do povo? O artista deve servir ao Estado? A arte deve ser política? O autor aborda essas questões magistralmente, por meio do diálogo estabelecido entre Virgílio e César: “Nenhum dever pode ser imposto à arte, nem o dever de servir ao Estado, nem qualquer outro; com isso ela se tornaria mera antiarte, e quando os deveres do homem estão em qualquer outro lugar que não na arte, como acontece atualmente, não lhe resta outra escolha a não ser abdicar da arte, até por reverência a ela.”
Há reflexões profundas perpassando todo o texto: “O tempo amadurece para algo todos os dias”; “O amor sempre transcende o seu próprio limite”; “A liberdade está conosco; o Estado é ridículo e terreno”; “A massa popular não quer conhecimento; quer o espetáculo de imagens fortes e nítidas, cujo conteúdo compreenda”; “O mundo está abarrotado de obras e, no entanto, vazio de conhecimento”.
Virgílio e Cesar debatem sobre a preparação do artista, sua função e a amplitude da obra de arte: “Sem uma base comum do conhecimento, sem princípios, não há compreensão, nem explicações, nem argumentações, nem convencimentos; o olhar comum para o infinito é a base de todo o entendimento, e sem ele até a mais simples comunicação torna-se impossível”. “Em toda a obra está o gérmen de uma transcendência que a alça acima de si mesma e de quem a criou - torna quem as criou em criador, porque a plena incoerência do acontecimento só se estabelece quando o homem atua no universo - não há incoerência nos acontecimentos do deus ou do animal - ; e a profícua magnitude da condição humana é revelada, transcendendo a si mesma; entre a mudez do animal e a do deus está a palavra humana, esperando o instante em que, ela mesma, se cale no êxtase, irradiado do brilho do olhar, cuja cegueira tornou-se extasiada em ver: cegueira extasiada, não caducidade.”
Mais uma vez, o poeta profetiza o advento de Cristo: “o redentor se sacrificará por amor aos homens, por amor à humanidade, e através de sua morte, fará de si mesmo um ato de conhecimento.”
Virgílio consegue sua redenção ao perceber que a consciência da realidade é o amor, não a beleza pela beleza. Ele fica em dúvida se a Enedia é uma verdadeira obra de arte ou apenas uma peça de propaganda panfletária do Estado Romano.
Na última parte, “Éter - O retorno”, Broch descreve o post mortem de Virgílio, a reintegração do homem no Ser.
É um romance praticamente sem ação. A história pode ser resumida assim: Virgílio retorna muito doente da Grécia para a Itália; é carregado em uma liteira pela cidade de Brindisi, onde o povo o hostiliza; deitado na cama, delira e resolve destruir a Eneida; conversa com amigos sobre o poema e a função da arte; modifica seu testamento; é dissuadido pelo imperador romano a queimar a obra; falece.
Isso em quatrocentas páginas em estilo único, composto por enormes parágrafos com descrições do tempo e espaço, marcado por opostos - tempo e eternidade, infinito e finito, efêmero e perene - e retornos das ideias em devaneio.
Embora de difícil leitura e truncado, o texto consegue transmitir ao leitor a angústia de Virgílio nos momentos que antecederam sua morte, narrar os estágios de seu desespero em rever o escopo de sua vida e obra e, na parte final, descrever literariamente o post mortem do poeta. Não é tarefa fácil, mas Broch a cumpriu com maestria.
A verdade não está nas coisas aparentes, sequer na beleza, mas na própria ideia de amor. O poeta não morreu: despediu-se para entrar na eternidade.