pedrocipoli 16/02/2019
“No século XX, o poder é triste”
Apesar de estar “familiarizado com a escrita de Camus” (aspas necessárias aqui), “O Homem Revoltado” é um livro que realmente surpreende. A análise feita do homem revoltado é dura e honesta, criticando tanto o capitalismo quando o socialismo (mais este). Aliás, é interessante (e precisa) a argumentação de Camus de que o “socialismo científico” de Marx não tem nada de científico, sendo utópico quanto qualquer outro.
Da mesma forma o autor nota, isso em 1951, que a tendência de um regime revolucionário é descambar em um estado policial, em um regime totalitário (a série “Trotsky” mostra bem isso). A promessa de liberdade vira tirania rapidamente:
“Partindo da liberdade ilimitada, chego à tirania ilimitada.”
O niilismo, um conceito explorado amplamente aqui, é impecavelmente abordado:
“O pensamento histórico devia livrar o homem do jugo divino; mas essa liberação exige dele a submissão mais absoluta ao devir. (…) A verdadeira paixão do século XX é a servidão”.
Ou seja, explora corretamente a afirmação de Nietzsche de que “Deus está morto” da forma correta, já que poucos enxergam o perigo desta ideia. Afinal, se “Deus está morto”, o que colocaremos no lugar? Esse é um dos pontos mais interessantes abordados no livro, e Camus não se intimida em comparar as ideologias revolucionárias com “religiões”. Religiões civis, no caso, como Vladimir Tismăneanu, já que incluem atos de fé sem qualquer evidência, promessa da “Terra prometida” ou de “tempos áureos”, incluindo aí tanto o Nazismo quanto os regimes Comunistas.
Não há preocupação em ser partidário aqui: Camus é bastante democrático em suas críticas. Críticas fundamentadas, naturalmente, ainda que tenham deixado pessoas como Sartre horrorizadas. O mesmo Sartre que negou os genocídios e horrores da União Soviética o máximo quanto pode, ainda que fossem amplamente documentados.
Camus parte dos gregos e passa por Sade, Dostoievski, Rousseau, Bakunin, Hitler, Mussolini, Marx, Comte, Lenin e Hegel para analisar o conceito do “homem revoltado”. Aborda outras que eu não conhecida, como Stirner e Saint-Just, além de analisar eventos históricos como a revolta de Espártaco e a Revolução Francesa, além de movimentos como o Surrealismo.
O parágrafo acima dá uma ideia da profundidade do livro. São 400 páginas de um conteúdo denso, por vezes cansativo, que deve ser estudado. Não é um livro para praticar “leitura dinâmica”: deve-se lê-lo, interpretá-lo e pesquisar sobre cada tópico abordado. É um material e tanto não apenas para quem quer estudar o assunto, mas também como um excelente ponto de partida para quem quer realizar pesquisas futuras. Tenho um sistema de marcação de trechos que tenta minimizar o desgaste do livro, mas é possível editar um segundo livro com a quantidade enorme delas neste aqui.
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Sobre a edição: apesar do preço, a obra é bastante espartana. Não encontrei erros de edição, mas também não senti nenhum esforço extra, nenhuma tentativa de “algo a mais” por parte da Record para um livro tão importante. Uma edição futura poderia incluir, por exemplo, comentários sobre os eventos envolvidos, panoramas históricos e outros pontos para engrandecer a leitura. Quem sabe capa dura. Há apenas uma introdução, o que certamente não ajuda a popularizar os livros de Albert Camus no Brasil.
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Vale a leitura? Sim. Compre. Leia agora mesmo. Certamente é um dos livros mais importantes do século XX. Um longo ensaio que, assim como os de George Orwell (concorde-se ou não. Aliás, curiosamente ambos morreram com 47 anos), oferecem um panorama inigualável sobre o extremismo ideológico que foi este século. E sabendo, bom, tentemos não fazer o mesmo com o século XXI.