Ray of Light 07/02/2022
Eu não tenho palavras para descrever...
Essa leitura tem sido uma grata surpresa por essas semanas. Não vou mentir que esse livro só chegou até mim após vasculhar aquela plataforma de breves vídeos que começa com 'T', e não me arrependo, com certeza uma das melhores leituras do ano, e um dos favoritos da vida.
A narrativa logo me prendeu. Tenho um fraco por dramas familiares, ainda mais pelo ponto de vista da filha invisível e sozinha da família. A vida de Circe é contada a partir de seus ciclos: a filha, a amante, a mãe e a esposa, e o primeiro me cativou pelos desafios e as dores que passava. Embora os personagens se tratem por divindades, os exagerados caprichos e vaidades alimentadas por eles só diminuem no escopo do egoísmo humano.
Circe é negligenciada por sua mãe, que insulta sua aparência e peculiaridades, fazendo com que ela nunca se sentisse uma entre eles; seus irmãos, também dotados da 'pharmakeia', eram ainda mais excelentes e brilhantes que ela, e para seu pai, o grande Titã do Sol, era uma mera ferramenta de seu orgulho, uma extensão de seu nome, seu sangue e sua glória.
Para ser ouvida, Circe tinha que gritar, tirar todos do costume de não percebê-la, e logo, aconteceria o que é fatal para todos os que não se encaixam: são taxados de loucos e deixados à margem, não houve espaço para que ela provasse algo a eles, pois logo estava exilada em uma ilha chamada Aiaia, onde a história toma toda a forma. Um dos pontos mais altos da narrativa para mim é como Circe triunfa na solidão e nas suas fraquezas. A resolução da "figura da filha" foi uma das minhas partes preferidas do livro pois, depois de traçar toda sua jornada, Circe enfrenta seu pai em toda sua grandeza e finalmente consegue se emancipar e se livrar do seu exílio, por mais que fosse a filha do Sol, Circe já era sua própria pessoa, e não precisava mais ficar na sombra dele.
A narrativa ainda se sustenta em outros pilares, como a dicotomia entre o mortal e o divino. O começo foi eletrizante para mim, não cansarei de falar isso aqui, pois logo nos primeiros capítulos, temos o encontro dela com Prometeu, o grande herói que compartilhou da centelha divina com os homens. Circe é testemunha da sua sentença, e após uma secreta conversa entre eles, ela começa se apaixonar pela ideia da mortalidade e dos homens, embora nunca tenha ficado doente, ou até visto a cor de seu sangue, Circe via nos humanos os sentimentos que pulsavam tão forte dentro dela: insegurança, medo, raiva, e o tão grandioso amor.
O amor sonda o tema do mortal e o divino porque é onde o coração da deusa encontra um motivo para bater. Ela era atraída pela rígida fragilidade dos homens, como eles tinham vivido em algumas décadas o que ela testemunhou por séculos. Amante de Dédalo e Odisseu, carregou a semente da memória dos grandes heróis até que elas florescessem em algo maior. De Dédalo, o tear que dera de presente serviu como conforto para ela e Penelope, e de Odisseu, nasceu seu filho e seu futuro marido.
Telégono é quem nos revela a "figura da mãe". Circe descobre esse novo tipo de amor e como a força dele é avassaladora quando desafia a própria deusa Atena para mantê-lo a salvo com ela. Prometeu deixar que nada o machucasse, omitindo o sangue e as sombras das histórias heróicas, pintando o mundo como se fosse a mágica Ilha de Aiaia, e onde Circe mais queria que seu filho fugisse, era aonde o lugar que Telégono mais queria estar: nesse mundo. É fácil de perceber os paralelos entre sua família que fazia tudo por vaidade, e Circe que fazia tudo por amor. Uma das grandes lições que ela aprende com seu filho é sobre a liberdade, por mais que tivéssemos lutado por um amor, temos que deixá-lo ir para onde seria mais feliz.
O pilar mais importante da narrativa é a magia, e por mais que sutil, é uma alegoria para o grande motor de transformação que Circe passa pelo livro. A magia vem como um fardo e uma bênção, e a feiticeira carrega ambos com maestria.
Por mais que tenha dito que não tinha palavras para descrever, acabei tendo, mas sentir nas palavras da autora o que eu disse, e muito mais, é diferente. Circe é uma lenda e um mito para todos os fracos, solitários, loucos, nômades, e aos que iriam até o fim pelo o que acreditam.