Eduardo 29/03/2024
Eis aqui uma das obras mais valiosas não apenas da literatura brasileira, mas do mundo inteiro. Uma mulher negra, radicalmente pobre, solteira, mãe de três filhos e que, ainda assim, tinha esta mente brilhante.
Este livro diferencia-se pelo fato de que ele fala da desigualdade, mas de uma outra maneira da que normalmente se fala da miséria: é uma visão de dentro, não de fora; isto é, não se trata de um homem culto, estudado, que tem dinheiro e, através de estudos sociológicos, entendeu a favela e a explicou; se trata de uma mulher de DENTRO da favela, que VIVE em si, a miséria, e fez nada além de relatar como é passar por tudo isto.
A maior miserabilidade que enfrento ao realizar esta leitura, e que todos deveriam enfrentar ao ler, é não sentir-se apenas mal pelo fato do que ela passou, mas por lembrar do seguinte: inúmeras pessoas, HOJE, passam pelo mesmo (e algumas vezes, talvez por coisas piores) que ela passou. A favela do Canindé, em que ela morava, deixou de existir; entretanto, diversas outras surgiram. Nessa obra, ainda, há pouco relato sobre crimes relacionados à droga, tráfico e facção; já hoje, sabemos que em ambientes à margem social são recheados destes atributos; ou seja, não é que apenas não melhoramos a sociedade - a pioramos em alguns aspectos.
Chega a ser supérfluo as "estrelas" na hora de dar uma nota pra uma literatura deste tipo. Isso é a vida real; o retrato mais direto possível de muitos marginalizados.
A obra nos mostra sim como ela passou fome, como sofria e etc, mas devemos também nos focar como AINDA passam fome, como AINDA sofrem por não ter o básico, como AINDA políticos surgem apenas nas épocas eleitorais, manipulam e então desaparecem.
Este livro encontra-se atemporal e, por Deus, não deveria ser. Não. Deveria. Ser.
Há muito mais a falar, sempre há, mas finalizo esta resenha apenas com alguns trechos desta pessoa incrível que foi a Carolina Maria de Jesus. Poucos, porque se fosse para destacar todas as frases fortes e bem construídas que esta mulher escreveu, então haveria de colar o livro todo aqui.
"Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem."
"O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. E preciso conhecer a fome para saber descrevê-la."
"Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amavel! Se eu soubesse que ele era tão amavel, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. (...) O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se util a patria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatorio e envia para os politicos?"
"O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças."
"Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz."
"E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome!"
"Quem nos protege é o povo e os Vicentinos. Os políticos só aparecem aqui nas épocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas xícaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Camara dos Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais. ... Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos."
"Como é horrivel ver um filho comer e perguntar: "Tem mais? Esta palavra "tem mais" fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais."
"1 DE JANEIRO DE 1960 - Levantei as 5 horas e fui carregar agua."