Henrique Fendrich 25/03/2022
Acho que não exagero se disser que a leitura desse livro deveria ser mais "obrigatória" nas escolas do que, por exemplo, José de Alencar (que era ótimo e foi pioneiro em tudo o que fez, mas que, definitivamente, não dialoga com a nossa realidade tanto quanto o diário da Carolina). De fato, ainda existem favelas, ainda existe fome, ainda existem pobres (e, é claro, ainda existe todo um sistema político destinado a "despejar" qualquer pessoa indesejada).
O diário da Carolina é um testemunho vivo e extremamente interessante da sua realidade de fome e miséria na favela. Sua eloquência é enorme e a autora chegou, em diversas ocasiões, a verdadeiros achados de linguagem, pérolas mesmo (a própria metáfora que dá nome ao livro é poderosa), capazes de expor toda a hipocrisia por trás das ações dos políticos e do sistema que os mantém (convenhamos, pode-se tirar os políticos e colocar outros, pode-se trocar até mesmo as ideologias dos políticos, mas a favela e a miséria continuam lá).
Carolina conta o cotidiano da favela, seus personagens e suas frequentes discussões, que seriam até de se esperar em um contexto onde todos estão sofrendo para sobreviver, com a incerteza de quando se poderá comer outra vez. Eles estão à margem, foram transformados nos "restos" da cidade, e não se pode mesmo esperar que se comportem como lordes.
Hoje em dia, creio que cada pessoa citada por Carolina lhe meteria um processo, porque há situações bem constrangedoras para várias delas (e nem seria possível censurar as pessoas por buscarem dinheiro dessa maneira, já que estão lutando pelo mínimo para sobreviver). Da forma como está, porém, o livro de Carolina é bastante vivo e realista. Houve um sapateiro que falou à Carolina que não era aconselhável escrever a realidade e, de certo modo, não é mesmo, sobretudo quando se está do lado que é responsável por ela ser da forma que é.
Esse livro é um incômodo justamente para as pessoas queremos incomodar, toda a turba dos poderosos e bem-sucedidos que podem, mas não fazem nada para minorar o sofrimento dos menos favorecidos, além daqueles que usam a "caridade" como mero capital político.
Dito isso, é claro que Carolina é também fruto do seu tempo e do contexto perverso em que vivia, de modo que nem todos os posicionamentos dela seriam endossados no dia de hoje. Além de eu antever certos problemas na sua visão sobre a relação de negros e brancos (e deixo para os negros desenvolverem essa questão), percebo como bem problemática a visão que tinha dos ciganos, manifestando um preconceito que no dia de hoje não é mais aceito.
Evidentemente, isso não invalida o eloquente testemunho do seu livro, que, como eu disse, é tão relevante que, se há leituras obrigatórias neste país, essa deve estar entre elas.