Nathaniel.Figueire 19/05/2022Boa ideias de ficção científica, desenvolvimento de personagens fracoEm um resumo bem resumido: após a humanidade descobrir a existência da civilização de Trisolaris e de que ela invadirá a Terra (e aniquilará a humanidade) daqui a quatro séculos, a civilização da Terra precisa decidir como enfrentar essa ameaça. Fugir? Resisir? A narrativa do livro será tramada em torno das respostas que a humanidade tenta dar frente a essa enorme ameaça.
Como eu não costumo muito a me ater em resumos dos enredos (na internet, há ótimos resumos nesse sentido), vou me focar mais em analisar alguns pontos que noto como importantes nesse livro.
Enquanto obra do gênero de ficção científica, "A floresta sombria" continua e amplia os argumentos interessantes iniciados em "O problema dos três corpos". Uma das adversidades centrais para a humanidade nesse livro é os "sófons", computadores criados em prótons disparados pelos trisolarianos à Terra para impedir avanços nas pesquisas experimentais da Física. Isso permitiu ao autor imaginar um futuro da humanidade com elementos de "retrofuturismo". Explico-me: ele imaginou uma sociedade do futuro que elevou ao máximo as capacidades tecnológicas que temos atualmente, mas sem avançar onde a física teórica hoje aponta como o futuro (como no caso da física quântica). A própria ideia dos sófons me agrada bastante: um supercomputador gravado bidimensionamente em um próton que consegue se comunicar através de distâncias cósmicas instantaneamente (graças às ligações quânticas), tornando-se um superespião invisível e não rastreável no seio da humanidade. Acho que gosto mais dessas soluções de FC para o problema de comunicação cósmica (a velocidade da luz) do que as que são geralmente dadas para viagens na velocidade da luz ou para superação dela.
Nesse segundo livro, notei que o autor tentou dar um clima de esperança geral em toda a sua história. Há um "otimismo" em relação ao futuro: frente a adversidade, no fim a humanidade escolheu a democracia e o Estado de bem-estar social frente ao totalitarismo e ao fascismo; percebendo que investir em uma fuga da destruição do sistema solar levaria a desigualdades (afinal, nem todos poderiam fugir), a humanidade escolheu resistir... Eu realmente não acho que em uma hipotética sociedade do futuro nós coletivamente decidiríamos enfrentar uma ameaça hostil do espaço tentando diminuir a desesigualdade social e lutando para manter os valores dos Direitos Humanos. Talvez aqui o problema seja eu, intoxicado em uma situação conjuntural onde o capitalismo é cada vez mais predatório e onde o executivo do meu país não faz nada além de pregar o ódio e desestabilizar a psicologia coletiva e as instituições democráticas. Ou seja, eu ando com pouca fé na humanidade, então achei essa parte do futuro imaginado da nossa espécie um truísmo gigante do autor.
Nesse aspecto, porém, ocorre coisas interessantes. Quando a frota da humanidade do futuro é destruída rapidamente pela "gota" trisolariana (uma sonda enviada por eles para chegar aqui antes da frota principal), os sobreviventes decidem fugir do sistema solar e logo descambam para um tipo de sociedade totalitária e militarista que não hesita em exterminar seus pares pela sobrevivência. O autor aqui acaba sendo positivamente ambíguo (quando tratamos de seres humanos, é bom ser), mostrando que a humanidade pode reagir de formas diferentes frente às adversidades extremas a partir de uma análise de conjuntura (essas naves em fuga estavam deligadas da Terra, sem perspetiva de voltar, o que as fez se conectar com a realidade psicológica da "floresta sombria", como o protagonista depois percebe).
Continuando a ideia de que, se há seres inteligentes no cosmos, eles provavelmente são hostis, a construção da noção de "floresta sombria" para mim é o melhor do romance. Apesar de adorar Carl Sagan, sempre achei de um otimismo extremo ideias como a do projeto Voyager, pois é uma crença muito positivista/iluminista (falei isso em minha outra resenha) imaginar sociedades alienígenas como ética e moralmente superiores somente por serem tecnologicamente avançadas. A ideia de "floresta sombria", esse axioma da "sociologia cósmica" que o protagonista desenvolve ao longo do livro, parece-me não somente ter verossimilhança interna (ou seja, funcionando bem dentro da obra), mas também verossimilhança externa: sou fascinado pelo cosmos, mas nunca me pareceu que ele fosse algo diferente de hostil. Imaginar que o universo está cheio de civilizações avançadas prontas para aniquilar qualquer outra burra o suficiente para denunciar sua posição (afinal, os recursos do universo são finitos, todos estão em competição) me parece muito mais afinado com o que observo na natureza (e na humanidade) do que acreditarmos que Klaatu virá à Terra com uma mensagem de paz. (para deixar claro: adoro "O dia em que a Terra parou")
Na minha resenha sobre "O problema dos três corpos", o aspecto negativo principal foi a falta de profundidade dos personagens envolvidos. Nessa história, o protagonista, Lou Ji, é resenhado por muitos leitores como um protagonista simpático. Um acadêmico medíocre, que só chegou a ideia da sociologia cósmica por uma "dica" da Ye Wenjie, trata as mulheres como figurinhas de um álbum colecionável e é apaixonado por uma idealização feminina inventada em um exercício literário. É escolhido como um dos membros do Projeto Barreiras (uma tentativa da ONU de conter a invasão de Trisolaris, dando amplos poderes para um grupo de pessoas que jamais deveria falar em voz alta seus verdadeiros planos para não serem captados pelos sófons trisolarianos) sem ficar claro o real motivo disso (só saberemos no fim). Ele então usa os recursos do projeto para achar sua mulher ideal e... acha.
Só eu achei uma objetificação gigantesca da mulher aqui? Todos nós amamos uma projeção que fazemos sobre alguém, não a pessoa em si (entendo o suficiente de fenomenologia para compreender isso), mas daí essa projeção se materializa e tudo é lindo e perfeito? Eu achei muito brabo de engolir essa.
Não nego que isso lembra vários homens que já conheci, o que demonstra que o personagem tem uma "verossimilhança externa", mas, enquanto leitor, achei realmente difícil ver esse cara como "simpático" só porque faz umas piadinhas e tenta viver com bon-vivant. E o amor que Ye passa a ter por essa figura idealizada materializada no mundo real é o que no fim permite ele utilizar a "floresta sombria" contra os trisolarianos. Ou seja, o amor transformou um traste (a própria presidente da ONU o vê assim) em salvador da humanidade... Coisa piegas, uma solução simplista de desenvolvimento de personagem para um autor que, no livro anterior, já me provou que não consegue fazer personagens profundos.
Por trás dessa relação Ye e sua mulher idealizada, e outros elementos que notei também especialmente no último romance da trilogia (que estou terminando de ler enquanto escrevo essa resenha), percebo no autor um machismo sub-reptício que me incomoda. Em nenhum momento essa mulher idealizada (com a qual ele casa e tem filhos) de fato reage às projeções do marido, ela é um ser passivo, fica ali sendo total receptáculo das viagens do seu marido. Foi nela, especialmente, que eu achei que Cixin Liu derrapou feio na construção dos personagens, pois perdeu uma grande oportunidade de desenvolve-la, mostrando como de carne, ossos e sentimentos.
Esse ideia da "mulher receptáculo", passiva e compreensiva, vai ganhar ainda mais força em "O fim da morte", se o leitor me permite um spoiler...
Então, para finalizar, enquanto obra do gênero de ficção científica, gostei muito de "A floresta sombria", especialmente da ideia que dá nome ao livro. Agora, enquanto romance (que no fim sempre trata da psicologia dos protagonistas frente a uma adversidade), achei que ficou muito a desejar. O desenvolvimento dos personagens está melhor trabalhado do que no primeiro livro da série (onde nem há esse desenvolvimento), mas no fim achei esses desenvolvimentos rasos. Além disso, o final desse livro é bem bobinho, aquela coisa de "o amor da humanidade é maior do que a floresta sombria" para mim não colou.
Felizmente, a série continua, mostrando que o universo "não é um conto de fadas", para citar o antagonista de "A fim da morte".