Começa em mar

Começa em mar Vanessa Maranha




Resenhas - Começa em mar


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Krishnamurti 30/09/2017

Romance “COMEÇA EM MAR” – de Vanessa Maranha - uma revelação.
Belo exemplo de realismo mágico sob ótica impressionista a revelar um talento literário. Eis o que se pode afirmar do mais novo romance “Começa em mar” da escritora Vanessa Maranha. Todavia, forçoso é reconhecer, que uma afirmativa dessa natureza poderá parecer pernóstica a alguns, outros podem compreendê-la parcialmente, e a outros ainda, configurar enigma indecifrável, posto que a ninguém é forçoso dominar conceitos e teorias literárias. Por certo.
Raros são os livros em que se faz oportuno esclarecer certos aspectos estruturais antes de adentrar propriamente na análise de pontos como o enredo, as personagens, ponto de vista etc. Raro e prazeroso para quem os analisa porque é oportunidade de alargar visadas e compreensões. Muito bem, devagar com andor portanto.
A escritora Maria Valéria Rezende que assina a orelha da obra insinua que Vanessa Maranha nos traz “as delícias de uma linguagem livre, renovada e muitas vezes recuperada do tesouro de nossa língua”, uma linguagem sobretudo rica, cheia de surpresas e encantamentos. E o também escritor e professor de literatura Alexandre Bonafim, acrescenta no posfácio, que a obra possui uma “escritura impactante, de grande força existencial e estilística. Assim, ganham vulto no livro personagens descritos com pesada mão expressionista, também poética, mas de uma poética contundente”. Vejamos esses exemplos do estilo muito singular de Vanessa Maranha, e que servem também para apresentar a protagonista Alice:
“Encravara-se a Alice Zulmira Sánchez de Lima Oliveira, ainda menina, de frente para o continente, insular na Róvia baiana, com os pais fugidos do salazarismo, chegados à abastança de tonéis de azeite e fardos de tremoço negociados de última hora no porto de Lisboa, pelo que puderam liquidar antes da fuga. Perdidos, depois, pelas vias da pouca habilidade no comércio”. Pag. 11.
Filha de um português com uma espanhola, Alice “crescera aí então, na cisma de um, no lamento do outro, nenhum dos dois se abrasileirando, para eles, terra de negrada insana e lasciva”. Pag. 12. E a metáfora do que afinal representaram os pais em sua vida de dona de hotel: ...”o seu pai, um miúdo já cabendo em seu bolso, a mãe, somente uma brisa leve que tocava finalmente fresca os finais de tarde. O hotel era aquele que lhe trazia o mundo para perto de si.”. Pg. 17.
O romance vai compondo a personalidade de Alice, seus anseios, suas expectativas, e as tremendas decepções no amor: “Assim ela então tacitamente se comprometera com ele, que, sem gosto, concordara. [o marido Rafael] Tampouco os ardores desse homem ela alcançava, e ele sempre buscava as mulheres da rua, as que o apeteciam num melhor contento; não lidava com a quantidade industrial de pornografia que ele consumia [aí um detalhe digno de nota, o tal marido era descendente direto de portugueses também], a sua fome terrível nunca direcionada a ela. O olho duro e imóvel do homem, raramente em sua direção era um pequeno assassinato que instava Alice a quase seguir o pai no dom da diminuição, mas grávida, perseverou no contrário, a expansão de si e da sua estalagem, por dias melhores, Cádiz no horizonte, um dia; Sevilha talvez. Lisboa por meta.” Pg. 30. E é então, ante uma vida dessas, que a personagem desabafa:
"Depois vituperou, maldisse da própria vida, que vista em perspectiva, não passava de um embaralhado de enganos, daí voltava, sempre. À tristeza familiar, não fora exatamente criança; adolescente, trajada e calada aos modos de pequena dama ibérica do século passado, não se fundara em pertencimento algum. Moça, cavara casamento sem amor; mulher se estendera espectadora da vida dos outros, os turistas no seu ir e vir. Ingo [um amante] fora flash de luz, rápido, um raio rasgando o céu constante”. Aí temos, delineada em poucas linhas toda uma vida de frustração”. Interessante o percurso das personagens desse romance, todas, todas sem exceção, seres mal ajustados, insatisfeitos, infelizes que se atracam desesperadamente a toda sorte de experiências “amorosas” e frustradas. Realmente o desencanto é imenso no mundo hoje – mérito da autora que soube retratar bem esse estado de espírito do “homo sapiens” de nossa época. Mas aí surgem, aqui e alí também, lampejos de lucidez: “É quando o sem-volta aparece que se percebe a cegueira ou a ingenuidade do percurso. A cilada que se vai montando ao redor, em condição de aprisionamento sorrateiro. Quando se vê claramente os nós já vão fixos e desfiá-los torna-se árduo". P. 54.
Voltemos ao tal realismo mágico e ao impressionismo do início da resenha: O surgimento da corrente literária denominada realismo mágico deu-se no começo do século XX e é também conhecida pelos nomes de realismo fantástico ou realismo maravilhoso. A principal particularidade desta corrente literária é fundir o universo mágico à realidade, mostrando elementos irreais ou estranhos como algo habitual e corriqueiro. Além desta característica, o realismo mágico apresenta os elementos mágicos de forma intuitiva (sem explicação). O tom fabulatório alia-se no caso de “Tudo começa em mar”, a um enfoque expressionista, tendo em vista que o expressionismo não é moda, nem tendência, mas uma concepção do mundo. No texto de Vanessa Maranha ao longo dos capítulos, vamos desvendando o mundo interior das personagens, através da análise de subconscientes e de metáforas exageradas ou grotescas; seguindo assim, uma linha desagregacionista e ilógica, que é a própria expressão dos conflitos e paixões humanos; pouco importando os conceitos vigentes de belo e feio. Daí um enfoque pessimista da vida, marcado por angústia, dor, inadequação do ser diante da realidade, justamente como o mundo se nos apresenta cotidianamente. O Expressionismo capta o absurdo da miséria, da pobreza e da solidão humana, é a manifestação cabal de um mundo em decadência. Lamento e dor, atmosferas de escuridão e insalubridade, degradação da vitalidade e deformação grotesca do físico e da mente humana. Assim encontramos no texto as grandes metáforas da mulher-peixe, da anciã de duzentos anos, um marido que vegeta em um subsolo, outra mulher que some dentro de um espelho, um pai que cabe em um bolso e uma mãe que se torna afinal uma leve brisa.
É visível, também o engajamento social da ficção, na acurada análise da questão sociopolítica, que ocorre quando a personagem Jordana - que viria a enlouquecer -, após conversa com Hortência sai às ruas em dia de eleições. A narrativa sintetiza com rara lucidez o que somos, e o que estamos nos tornando, enquanto povo, enquanto nação.
"Alguma esperança pairando no dia de céu azul plácido, tanto quanto pode ser plácida a morte. Alguma torcida para que esse país em derrocada pelo populismo que o empobrecera terrivelmente em todas as esferas dos últimos vinte anos tomasse outra direção, diversa do sentido da turba emergente e muito raivosa que se despregara de algum grilhão do inferno para se coletivizar em impostura. O país se tornara palco de bárbaros e selvagerias e de judiciamentos sumários. Que valesse mais o grito histriônico de canções boçais e imbecilizantes para traduzir a alma de um povo que progressivamente involuía, sem educação, sem futuro. Um governo que estimulava a intolerância numa montagem retórica e rasamente retórica, acirrando ânimos e antagonismos, promovendo a escalada de uma gente com ganas de revide violento, um país narcotizado enfim"... “Um teatro chulo, de maus atores, as eleições desses desgraçados que por meia década mais arruinariam a rotina dos mortais com impostos que quase nada devolvem ao povo, a corrupção obscena, suas maquinações arbitrárias”. “Encenavam risinhos, esses homens psicopatas, papudos, barrigudos, larápios, grotescos, raposas, ao rebanho tolo e cheio de obediência, que seguia quase saltitante às urnas, ovelinhas alegres empurradas ao abate". P.80/81. Eis um quadro vívido e fiel da nossa sólida “democracia.
A autora realmente entrelaça com muita sensibilidade e na exata medida, as vozes das personagens em suas individualidades sem que se repitam, encontrando o ponto de cruzamento de destinos que unem as quatro personagens principais, Alice, Jordana, Marta e Hortência. O realismo mágico metaforiza os percursos de vida narrados com coerência. Veja-se o caso da personagem Jordana que trabalhava para Alice no hotel Arenal: “A Jordana sempre sentira viver uma vida que não lhe pertencia. Nascida em negativo. Ainda mulher. Muito olho contra, quem sabe perecesse semente mesmo vingasse não. Desenvolvida para não ser. A mulher era só superfície de alisar. A mulher era vaso onde despejar tremores líquidos, sua carne de fundo íntimo aberta em rasgo. Pra baixo de réptil, imbecil, amordaçar-lhe a sua muita fome”. P. 120.
Já a Marta, esposa de um rico fabricante de sabão – Armando -, se “apaixona” pelo padre Anselmo. Veja-se o trecho em que Marta se confessa com o padre:. “Marta inicialmente chorou muito e daí começou a narrativa da sua vida, desde menina, a pobreza, as seduções todas, o marido péssimo, as válvulas de escape. Omitiu passagens obscenas, tentou reforçar causalidades que justificassem tanta carência acumulada, sua vida de cadela, sua inutilidade no mundo e, por fim, que cuidar dos seus entrementes estava sendo, para ela, um propósito de vida, mesmo que não recebesse dele nada em troca”. p. 145. Mais adiante, a relação do casal degringola de vez e deságua numa espécie de tara sexual. (não se está falando de amor, e sim dessa febre, dessa ânsia, ou seja lá que nome tenha essa perdição confusa e profusa de sentimentos e desejos insaciáveis em que nos afogamos). Marta dopada durante as noites é violentada pelo próprio marido. Armando entra sorrateiro no quarto: “Seguia ele, então, louco de amores, obcecado por sua carne fendida, a sua forma, a sua palpitação úmida e tremulante, o seu cheiro. Os dias de armando não andavam sendo nada além do que meros ensaios para quelas sessões depravadas de sexo ginecológico. A volúpia dormente daquela mulher o levava a alturas muito sublimes, quase insanas, uma fome inexplicável tinha ele daquela carne”. p.158. “Era esse o amor de Armando e Marta”. Seguiam as coisas nesse pé de descalabros até que “Marta dentro do espelho desapareceu”. p.166.
Uma coisa assim deixaria ruborizado de vergonha o alienista de Machado de Assis, Simão Bacamarte, que fundou em Itaguaí, o manicômio chamado Casa Verde para abrigar todos os loucos da cidade. Mas certamente a julgar pela ironia sardônica do bruxo do Cosme velho, talvez ele o Simão, revisse hoje sua conhecida sentença: “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”, e trocasse a palavra continente para planeta. Esta consideração nos vem à mente a propósito da quarta personagem de Maranha, a Hortência, que ao saber que um de seus filhos, o Caio, era amante de Agenor o marido de Jordana, “não olhou o filho. Não o olharia mais, nunca mais, como num parto arrevesado o devolvia ao seu lugar de origem, qualquer que fosse esse lugar. Figurava a Jordana enlouquecida, e então, sobre um filho tão mulher e canalha assim, não conseguia articular compreensão. Hortência ensimesmou-se. E foi preciso chamar uma ambulância que a levou ao hospital psiquiátrico, parada igual ao tempo que não passa sentira partir de si a última porção de entusiasmo possível. p. 155.
Várias as questão abordadas. A condição da mulher oprimida ou a se autodepreciar, a depressão, o Brasil com sua eterna dívida social – lembrai-vos da escravidão sempre varrida para baixo do tapete -, os amores em completo desastre, os imigrantes do mundo sem pouso, os mitos transplantados da “civilização” européia por terra, a loucura avassaladora, a sexualidade exacerbada, a abordagem muito bem feita e sutil da fronteira entre o sonho, o pesadelo e a loucura, a descida afinal às profundezas do ser, a medonha solidão universal. Há nessa obra um acordo consubstancial entre o que a romancista diz e o modo empregado para o dizer. Estilo brilhante vestindo rica capacidade inventiva.Talento imaginativo a criar também o meio expressivo adequado às intuições.
Eça de Queiroz escreveu uma frase muito emblemática sobre a liberdade de pensamento: “Cada um pensa como quer, como sabe, como lhe deixam ou como lhe convém”. E Alice, “quando se viu arrebatada por um passado extenso demais lhe fustigando em pontadas e pedidos de revide, ao que – e aí a Alice percebia a loucura da coisa toda – nem haveria a quem revidar, quando toda a gente ia transfigurada em símbolos poderosos nas suas abstrações, foi então que ela decidiu se aviar. Botar terra abaixo os cadáveres insepultos e desocupar o espaço de sombras que ocupavam, sempre ali, permeando, tornados desconfiança e solidão”. E Alice começou a pensar afinal! Dentre outras tantas e pequeninas coisas de que nos esquecemos, e que nos poderiam fazer felizes, lembrou também que “Um grão de areia contém moléculas do universo inteiro”. Sim vale a pena conferir o que consegue a Alice... Está explicadíssima portanto, a razão de termos escrito no início dessa resenha que o romance “Começa em mar” é um belo exemplo de realismo mágico sob ótica impressionista a revelar um talento literário, talento que foi inclusive reconhecido com Menção Honrosa no Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura em 2016.
Livro: “Começa em mar”, romance de Vanessa Maranha, Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2017. 190 p.
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Penalux 10/10/2017

Destino do Mar
O realismo mágico enxerga o mundo sem lentes de esperança, neste -ritmo no qual a fantasia é desenvolvida como recurso para intensificar a natureza sobrenatural das tragédias da vida humana - foi que escritora Vanessa Maranha escreveu “Começa em Mar”
O livro narra a história de quatro mulheres, Jordana, Marta, Hortênsia e Alice, sendo que esta última também é apresentada na obra como Zulmira e Zuma. A escritora explora o sentimento de amargura das personagens motivados na impossibilidade dessas mulheres desenvolveram o seu ser, o que resulta na redução da sensação de realização, que só é atingida quando o ser humano consegue se identificar com sua verdadeira essência.
Vanessa Maranha começa a sua obra com o capítulo “Fado”, no qual a infância da personagem Alice é apresentada. O título “Fado” é representativo por si só, abrindo as possibilidades de interpretação – quem sabe o fado que Alice carrega é a sua própria infância mal-acabada. Neste instante a sina dos pais de Alice é explorada e contornada pelo olhar pessimista do realismo fantástico. A autora mostra-se dominadora de saberes diversos, utilizando um viés de olhar psicanalítico, o qual compreende a infância como momento da estruturação da personalidade e dos seus traumas.
A trama se passará na ilha de Róvia, sendo que o cenário do mar se distingue aqui, não por encantar, mas sim por representar a vastidão típica dos destinos humanos que não podem ser controlados; apenas podem ser observados da areia, enquanto suas águas se agitam e perdem-se na amplitude quase infinita do mar.

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