DIRCE 16/01/2022
Amélia que era mulher de verdade?
Que nada! Mulheres de verdades eram a Dolly e a Kitty.
Brincadeiras à parte ( não resisti) vamos ao que interessa.
Não é a primeira leitura que faço dessa obra, mas é como se fosse. E que leitura...
Ouvi, algures, que V. Nabokov disse a seguinte frase: Quando alguém lê Turguêniev sabe que está lendo Turguêniev, quando alguém lê Tolstói lê simplesmente porque não consegue parar.(se não for isso é algo semelhante). De Turguêniev não tenho o que dizer porque li somente Pais e Filhos ( obra maravilhosa) , porém de Tolstói já li inúmeras obras e concordo em gênero número e grau. Eu devorei as 816 páginas em dez dias.
Mas não vou me deter comentando sobre o enredo e as personagens, embora possa assegurar que se alguém estiver atrás de uma estória de amor irá encontrar duas e não somente uma. E arrisco até dizer que se for uma leitora muito romântica( como eu era na minha primeira leitura de A. Karenina) pode dar asas a imaginação e se transmutar para o luxuoso salão, incorporar a belíssima dama e se deixar levar pelo jovem Vronski aos compassos da época.
Porém, o que eu quero comentar foram os pensamentos que povoaram minha cabecinha durante a leitura. Devo confessar que eu transitei o tempo todo entre o século XIX e XXI. Que temas atuais! Tolstói foi magnifico ao criar uma estória de amor que envolve o adultério para expor suas ideias sobre os mais variados temas como casamento, o papel da mulher, a aristocracia – onde reina a maledicência - , o homem do campo, a fé, e, bem no final, uma crise existencial vivenciada por Levini. A abordagem psicológica que Tostói faz das personagens é inacreditável – quer sejam das personagens femininas quer sejam as masculinas. Fiquei atônita. Como pode um homem conhecer tão bem a alma humana? Como pode Tolstói conhecer tão bem a alma feminina? Não é que eu achava que somente o Mia Couto e o Chico Buarque possuíam essa sensibilidade?
Mas e o meu passeio entre os dois séculos? Bem, comecemos pela desigualdade social, não é novidade que ela se faz presente nos dois séculos . No final do século XIX já fora abolida o sistema de servidão, mas as condições dos camponeses eram, no mínimo, desoladoras : não tinham acesso às escolas, assistência médica , em suma, não tinham direito a nada. É na figura de Nicolas (irmão do Levini e do Sérgio) que vemos o anseio por uma sociedade mais justa, porém nada lhe resta além desilusão e o alcoolismo. Como não comparar ao nosso século (XXI)? Não temos , nós, as grandes fortunas e os famintos? Não temos, nós, aqueles que têm acesso a uma educação esmerada e aqueles que não conseguem nem concluir o ensino fundamental? Não temos, nós, aqueles que têm assistência médica em hospitais de renomes e aqueles que morrem à espera de um leito ou de um médico?
Outro passeio que fiz entre os dois séculos foi o tocante ao papel da mulher em uma sociedade. Seria Ana K, uma vilã ou uma vítima? Confesso que tive sentimentos bem contraditórios em relação a ela. Antes de me estender na conduta da Ana, tenho que mencionar uma pequena “discussão” que tive, dias atrás, com minha filha quando comentávamos sobre o filme “ A filha perdida”. Creio que há uma década li o livro e fiz um comentário aqui no Skoob. Abominei o livro e, igualmente, abominei o filme. Não concordo que ambos ( livro e filme ) foram felizes ao tentar desmitificar a maternidade. Já, minha filha, defendeu que Leda tinha o direito de se realizar profissionalmente e que ela não abandonou as filhas – elas ficaram com o pai, e acrescentou : isso não aconteceria se não existisse o casamento compulsório. Discordei, claro. Leda teve um caso amoroso com outro homem e abandonou as filhas sim.
Mas , e quanto a Ana? Seria ela uma vítima ou uma vilã. Linda, jovem, brilhante e dotada de muitos outros atributos, casou-se com Aléxis - homem 20 anos mais velho. Com ele teve um filho. Porém, quis o destino que ela se apaixonasse por Vronski e sua vida mudou completamente.
Eu não considero Ana uma vítima , tampouco uma vilã. Considero-a uma infeliz. Tolstói não especifica em que situação Ana contraiu casamento com Aléxis , então sou levada a acreditar que ela foi vítima de um sistema social em que o casamento nem sempre corresponde aos ditames do coração. Só que: explica, mas não justifica.
Quanto ao destino de Ana ? Ficou claro para mim que pessoas como Ana ( século XIX) e Leda (Século XXI ), foram severamente punidas ( faço menção à Leda no tocante a punição, face o final do filme ter sido um tanto quanto ambíguo)
Fui levada a concluir que só mulheres como Dolly que teve 7 filhos ( se não estiver enganada), que teve que aturar um mala sem alça que era o seu marido ( Oblonski) . Bem, mala sem alça é um adjetivo não merecido, pois Oblonki era muito mais que isso. Ele era infiel, bajulador , pegajoso, enfim, um ser horrível, e a pobre Dolly ( sem instrução alguma ) se desvalorizou, abriu mão de qualquer sonho e passou a viver apenas para os filhos, e o pior de tudo: aturou o mala sem alça.
Quanto a meiga e bela Kitty ( outra personagem central nessa obra) teve o direito ao seu quinhão de felicidade. Não podia ser diferente. Ela foi de uma dedicação impar ao cuidar do moribundo Nicolas – irmão do seu marido Levine, e mais: aguentou 22 horas de dores inimagináveis de parto.
Tolstói, ao relatar o indiferente sentimento que Levine nutre pelo seu filho recém- nascido até o momento que ele julga tê-lo perdido, deixa claro para mim ( perdoem-me os papais que, por ventura, lerem esse comentário) a diferença entre a maternidade e a paternidade - no meu entendimento, claro. Isso talvez explique porque eu acreditando nessa diferença, apesar de ter achado injusto e cruel o destino final da Ana, e ainda que dela eu tenha me compadecido, inúmeras vezes, no decorrer do romance , não tenha conseguido absolve – lá pelo abandono do filho.
Finalizo, me desculpando pelo longo comentário, mas 816 páginas com personagens tão me diversos e conteúdo tão rico não permitem comentários de poucas linhas . Também quero acrescentar minhas conclusões: século se passou e ainda é exigido que a mulher do século XXI seja bela, recatada e do lar, e Tolstói foi simplesmente magnânimo em escrever essa obra que me possibilita , quem sabe, em breve, que eu venha a me policiar e ser mais condescendente em meus julgamentos, embora eu tenha a impressão que Tolstói foi um tanto quanto severo, porém o que ele deixou claro para mim é que a culpa é sempre muito subjetiva e a maior punição é conviver com ela.
PS1: alguns leitores de Anaa Karenina podem estranhar os nomes das personagens, porém estou sendo fiel a edição que li: Nova Fronteira, 2017.
PS2: Meu marido foi um PAIZÃO para minha filha, ela parecia sua sombra – quando ele se encontrava em casa ela não o largava.