Krishnamurti 08/01/2018
O ANJO DE VIDRO NUM CIRCO DOS HORRORES
Hermano José Falcone de Almeida é médico e atua como psiquiatra da infância e adolescência desde 1994. É também mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba e um escritor que parece compor suas obras a partir de suas vivências íntimas a fazer par com profunda preocupação com os rumos que vai tomando nossa sociedade. Disso é testemunho seu livro de poemas “Persona”. Agora deparamo-nos como o romance autobiográfico “Anjo de vidro”, este a narrar sua trajetória de vida, todavia, com foco mais centrado em um acontecimento recente e de muito sofrimento pelo qual passou.
O autor é portador de Osteogênese Imperfeita, enfermidade genética que o prende a uma cadeira de rodas e que já lhe causou inúmeras fraturas pela vida afora em decorrência do enfraquecimento ósseo que provoca. Em 2017, aos 48 anos de idade, uma queda causa a fratura do fêmur de sua perna esquerda, o que lhe traz um rosário de privações:
“Sou colocado com cuidado numa ambulância do SAMU. A técnica de enfermagem limpa o sangue e o suor que escorrem de mim. A ambulância dá partida. Olho para o teto. Imagino David-Lázarus cantando e olhando para mim. Não existe ressurreição. No terceiro dia ao invés de ressuscitar, passarei por cirurgia.
Apenas minha coxa esquerda. Meu fêmur. Agora tudo vai mudar. A queda no bunker da minha vil humanidade”. p. 18/19.
Sua situação complica-se no pós-operatório, baixa UTI, aflições indescritíveis, e ainda assim, nos momentos em que a dor permite, segue criando personagens:
“Mais uma jornada entre cama e cadeira de rodas. Vamos lá. Que tal uma história? Decameron com um sobrevivente da peste verde e amarela brazilis? Agora sou o menino Josafá, 11 anos, preto. Moro na comunidade do gato Leo. Tenho três irmãos e 2 irmãs. Meu pai bebeu 3 garrafas de cachaça bode escroto ao som de Wesley Safadão e copulou com minha mãe. Depois deu umas porradas nela e saiu. Me deixou germinando no ventre da mamãe e nunca mais ouvi falar dele”. p. 27.
Josafá, General, Leo, Breno, Bruna, Mônica... todos os personagens, de uma forma ou de outra, acabam tragados pelo ambiente inumano que respiramos no Brasil. Mas eis que os dias se passam e agrava-se a situação do narrador-autor:
“Deixei de pagar uns meses o condomínio e recebi como presente execução judicial. Além de outras dívidas. A cada dia internado uma perda. Não podia compensar trabalhando mais. Resultado: te vira. Me senti como um Jesus: um bandido procurado por não cometer nenhum crime. O oposto do que ocorre no Brasil. Cunha impune, marchas, blábláblá e nada. Eu procurado e executado por adoecer”. p. 66.
E em meio às criações ficcionais, assistimos o desenrolar de sua vida de menino pobre e doente, vemos o jovem que um dia acreditou em partidos políticos “redentores” estudar e acreditar no reconhecimento de sua formação profissional, - ledo engano-, o passado entremeado com a narração de sua vicissitude atual. Todavia há também espaço para lampejos de aguda consciência social:
“Eu, particularmente, não acredito que o Brasil tenha vivido democracia e sociedade de direito. Coronéis e cangaceiros mandam sempre. Café com leite, pó, whisky e crack. As classes sociais são visceralmente interligadas por jogos de favores. Quem está dentro da partida joga. Reality show com miau tomando leite de cobra”. p. 73.
Não se procure no texto de Hermano a elaboração literária formal, ou mesmo um plano ficcional definido. Sobeja o desabafo forte, a indignação legítima de não ser cidadão. É autor rápido no gatilho, direto, crítico mordaz, embora adorne certos trechos de um humor sardônico. Quem conhece minimamente a nossa História e lê um livro como o de Hermano fica com um amargo sabor na garganta porque reflete afinal que, depois de 5 séculos, ainda não temos a mínima ideia de como harmonizar uma essencial ordem ética submetendo a esta a econômica e não o contrário. Os mais complexos sistemas são imaginados e experimentados; tenta-se mudar isto e aquilo, mas o nosso egoísmo permanece intacto e com isso a substância das coisas. Se no Brasil o “do ut des” (dou para que tu dês) é a psicologia dominantes, se a necessidade ou ganância são os únicos meios de conseguir que um homem trabalhe, se não há proporção entre trabalho e ganho, se na especulação permitida e incentivada se acolhem parasitismos terríveis, se a vontade se orienta exclusivamente para a vantagem individual, se a inconsciência ignora a função social da atividade econômica, e finalmente; se a grande máquina não se move senão pelo hedonismo, seja ele de direita ou de esquerda ou de centro ou de Marte, temos que amargar os resultados que disto decorrem, porque somos incapazes de ascender do lodo hedonista para uma fase positivamente colaboracionista e assim construir verdadeiramente uma nação.
O autor nasceu para batalhas terríveis contra a doença rara que o acometeu, lutou, luta e em certa medida a vai vencendo – porque estava fadado a vegetar sobre uma cama –, venceu repetimos; é homem de fibra rara. Sente o seu eu a gritar e não pode calar. Sabe que não é somente um corpo, sabe que pulsa-lhe algo infinitamente maior. O espírito que em tantos cochila, nele aparece gigante, evidente, troveja e se impõe. Quem o pode compreender em sua existência difícil e dolorida? Ele tem consciência de seu destino, porque ninguém se apega “a um fio de vida” somente por isto em si. Há mais, muito mais aí. Vive de lutas titânicas em seu interior porque almeja a civilização de nossa humanidade, luta pois com as armas de que dispõe por um mundo melhor, sem consentir na mediocridade. Conheceu o esmorecimento de quem defronta sozinho o abismo das grandes dores físicas, a vertigem das grandes alturas que o pensamento o impulsiona, o amargurado isolamento de alma em face da inconsciência humana. Relata-nos as incompreensões dos que o taxam de louco, e compreende afinal a inferioridade de quem não o compreende.
É uma centelha de inteligência e sensibilidade com moral aprimorada no meio de uma mediania medíocre em que a inércia predomina e a vida não sabe senão manter-se e reproduzir-se, fechada no ciclo de suas funções animais, a custa de tiro, porrada, roubalheiras, cinismo, estupros, preconceitos brutais e toda sorte de “atrações” que o circo dos horrores brasileiro oferta.
Como ficar impassível diante de um trecho como este?
“Meu corpo é uma metáfora do Brasil. Aliás, milhares. Tenho ossos de vidro, dores, visito a morte de vez em quando. Mas quantos outros? Vejam nas ruas. Crianças à espera da vala comum com corpos dilacerados por fome, drogas, raiva e medo. Nos lares ditos ou malditos normais, a vaidade, a luta pelo poder, Caim e Abel, Édipo e Antígona. Iagos florescem por cada metro quadrado. O Iago do Otelo. Shakespeare inventando intrigas, distorções, jogando uns contra os outros, se deleitando com o caos e a morte. Sou aleijado. Somos Aleijados! Aleijados do verbo amar. Ossos de vidro. Meus ombros irradiando dores. E Iago me joga num precipício distorcendo o que já nasceu distorcido”. p. 115.
(1) Iago é um personagem da peça Otelo, o Mouro de Veneza, escrita por William Shakespeare (1564-1616). É considerado um dos maiores vilões da literatura mundial e, com certeza, é o mais bem elaborado pelo dramaturgo. O malévolo Iago consegue enredar, através da intriga e da dissimulação, quase todos os demais personagens que são manipulados como fantoches.
Livro: Anjo de vidro – romance autobiográfico de Hermano José Falcone de Almeida. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2017, 160p.
ISBN 978-85-5833-229-3