Paisagem Interior

Paisagem Interior Marcos Vinícius Almeida




Resenhas - Paisagem Interior


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Krishnamurti 24/09/2017

Paisagem interior
Apenas seis contos compõem o livro “Paisagem interior”, que demarca a estreia em livro solo de Marcos Vinícius Almeida. Seus temas são os dramas, as comédias, as memórias e as tragédias da personalidade, em que ressaltam conflitos inerentes à condição humana e que formam em última instância a nossa individualidade. Personagens e cenários que nos remetem para pequenas e bucólicas cidades do interior (informa-nos nota biográfica ao final do livro que o autor “viveu desde sempre em Luminárias interior de Minas Gerais”). Criada a personagem, introduzida no cenário que lhe cabe, vem o conflito, a situação, a “fatia de vida” porque este contista parece buscar o veio ficcional, por mais tênue que este seja e segue-lhe o curso na sucessão dos naturais desdobramentos.
“Paisagem interior” delineia um ficcionismo em torno de personagens bem estudados, tanto nas ações quanto nos sentimentos. Marcos Vinícius não foge à curiosidade de vê-los por dentro, porém de maneira impessoal, deixando ao leitor um julgamento próprio. Num dos instantes mais altos do volume, justamente o primeiro e maior conto “O andarilho”, vemos a narrativa da formação de vida de um garoto /adolescente que sofre e se questiona profundamente ao presenciar o acidente que resulta na morte de um de seus amigos. Trata-se de um conto muito bem elaborado que levou Luís Roberto Amabile em posfácio ao volume escrever que desfilam nesta ficção ”episódios narrados majoritariamente a partir do ponto de vista do menino João. Assim, como num romance de formação, acompanhamos as descobertas e as dores, que vão amoldando o caráter do menino”. É uma narrativa quase memorialística que não nos remete somente ao fato lembrado e narrado, mas cria a possibilidade de deslocamento no tempo e no espaço, interconectando palavras e representações, correlacionando sentidos – no caso específico o encontro que o garoto teve com um certo andarilho no dia em que seu amigo morreu, e que volta a encontrar depois do enterro – abrindo perspectiva de acesso ao estudo do passado, bem como a ressignificação do lembrado.
Quando o narrador-autor reflete sobre a vida e a morte após o óbito do amigo Rafael, há uma definição da transitoriedade do ser e tudo que o cerca na vida. “O filho do homem nascido em dezembro e morto na sexta-feira e renascido na Páscoa. Há dois mil anos. Vive enquanto palavra repetida e história contada pelos homens. Mas também isso é vaidade. Civilizações inteiras ruíram sem deixar vestígios. Reis, profetas. Línguas outrora sagradas agora extintas arrastaram para o nada os nomes de deuses nunca mais pronunciados. Esqueletos calcinados e soterrados tão fundo no silêncio da terra são agora a própria terra. Como se nunca tivessem existido”. Mas há naquele conto um outro aspecto que merece registro e que é o mote para um outro texto muito bem realizado por dar-nos conta de certo aspecto da escravidão pouco explorado, não no sentido da rebeldia escrava, que esta a história conta em rios de páginas, mas a da luta surda, diária, silenciosa, abafada em sabotagens e assassinatos que o regime de escravidão propicia. Mas de que falamos? Qual “cargas” estou a fazer desse nexo? Simples. Elementar. Porque essa é também a nossa “paisagem interior” em termos sócio-históricos que nos atira à face o deprimente jogo de terra arrasada entre oprimido e opressor que todos nos brasileiros bem sabemos qual é. : Vejamos o trecho: “Não tinha quase nada naquele lugar. Apenas os restos de uma casa de outro século. Aquilo tinha sido uma grande fazenda em outros tempos. De senhores de escravos atrás de ouro e diamantes e plantadores de cana e depois de café e depois criadores de gado. Jagunços e donzelas haviam desfilado naquelas terras com ouro nos dentes. Duzentos negros feitos escravos tinham vivido ali antes de se rebelarem. Botaram fogo na fazenda e enforcaram as mulheres e crianças e crucificaram os senhores na cerca do curral. Os mais velhos contam que um filho do barão fugiu com um baú cheio de moedas de ouro e de prata e o enterrou em um lugar próximo do rio”.
Agora o conto “Divisa” que narra a história de um certo filho do barão de Abaité, que tinha como diversão colocar negros escravos como premio para a caçada que seus cães de Sevilha costumeiramente empreendiam. Numa ocasião, ao escolher entre três iscas/escravos, o sujeito acaba por escolher um escravo forte o bastante para competir em velocidade com os cães. O negro é posto em fuga e os cães partem em perseguição. É um conto curto, ágil, que nos deixa com uma curiosidade imensa de saber seu desfecho – ponto para o autor – mas como não vamos contar o resultado, apenas reproduzimos trecho que simboliza o sentido do que venho considerando:
“E naquela noite, já consolado, ele [o filho do barão] tomou um longo banho e foi se deitar. Mas então algo se mexeu debaixo dos lençóis. E quando tentou se virar, uma picada e um ardor nas costas e ele gritou muitas vezes o nome do seu pai. O capitão foi o primeiro a entrar e passou a ponta da espingarda no lençol. Era um dos melhores atiradores do bando, e eram sete as cobras escondidas no leito”. Vale a pena conferir o desfecho desse texto.
Em “Ele ainda tocava violão”, o autor faz uma colagem de vários momentos de vida do personagem André, vivências de seu velho tio, e um instrumento - o violão – que funciona como metáfora afetiva. Neste texto a memória é descrita fragmentada, parcial, uma coisa que está em mutação, até porque não há a memória absoluta, mas uma sempre em movimento, em transformação. Assim, nossa paisagem interior se plasma nos acontecimentos da vida.
O poeta Marcos Siscar, de quem há um verso transcrito no livro a título de epígrafe escreveu: “começar de dentro, do interior de onde as coisas começam, onde terminam sua elipse vertiginosa, o interior é o fim da partida, é o começo da volta. Sair como quem volta. Voltar como quem sai. A ficção viagem”. Assim os contos de Marcos Vinícius Almeida.

Livro: Paisagem interior – contos, de Marcos Vinícius Almeida, Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2017, 110p.
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR