Stella F.. 21/09/2022
Bandeirantes e Mulheres Fortes
A Muralha – Dinah Silveira de Queirós – Editora Record - 2000
A leitura foi muito prazerosa.
Foi interessante ler este livro, após tanto tempo depois de ter assistido parte da séria “A Muralha” do início dos anos 2000. Lembrava vagamente, mas ao pesquisar sobre a série vi que houve mudanças de nomes de personagens e inclusão de outros que nem existem no livro.
José Lins do Rêgo se manifestou sobre A Muralha: “As figuras humanas crescem de vulto e assumem a importância de absorventes estados de alma. Aí o livro vence e se expande como força de criação autêntica. A figura de Cristina, já no fim do livro, se confunde com a terra que ela leva no ventre. O cheiro do pântano que lhe penetra na carne se transforma numa espécie de feitiço que a prende ao solo para sempre.”
O livro é muito bem dividido: na primeira parte, Descoberta da Terra, conhecemos Cristina e Joana Antônia, uma moura que Cristina conheceu no barco, e a forte família de Dom Braz, um explorador de novas terras do sertão de minas gerais. Dom Braz Olinto é um bandeirante paulista que tem o aval da Coroa para a exploração do Sertão. Em um primeiro momento vemos Cristina ficar na expectativa de conhecer o prometido Tiago, um dos filhos de Dom Braz. E só ocorrem desilusões. Depois de uma viagem de meses, chega a uma terra inóspita, São Paulo de Piratininga, ainda em construção e logo se decepciona porque o noivo não há está esperando no desembarque. Quem a espera são Aimbé e Tuiú. E ainda tem que caminhar por muito tempo para chegar à fazenda, Lagoa Serena, e no caminho acontece o inesperado: sua bagagem com os presentes trazidos na viagem cai no precipício. Ainda no caminho para na casa de Dom Guilherme Saltão d’Ajuda, onde é bem tratada, mas fica impressionada com a relação entre as índias e seu patrão. O noivo Tiago adora as estrelas que servem de guia nas viagens e parece não se interessar muito por Cristina ao vê-la, parece não acreditar no amor. Tem paixão por uma estrela e a chama de Rabudinha. “De tanto olhar o céu, fui ficando enojado da terra, dos sentimentos, das coisas do chão. Vosmecê, quando estava longe, parecia minha estrela... a Rabudinha. [..] Agora, aconteceu como se a Rabudinha tivesse descido do alto, e viessa para cá, para esta sujeira.” Na fazenda ainda conhecemos as irmãs Rosália e Basília que são muito diferentes entre si, mas que nutrem um afeto imenso uma pela outra. Somos apresentados a Dom Braz e sua esposa, Mãe Antônia, a mulher forte da casa quando os homens viajam, por longo tempo, para exploração das minas. E o maior exemplo de amor encontramos no casal Leonel e Margarida. Leonel é filho de Dom Braz e Margarida cuida de sua casa, afastada da fazenda, tem um papagaio, e torna-se muito amiga de Cristina. Mas, de vez em quando, parece ter umas sensações esquisitas, como se fossem premonições. E não menos importante Isabel, uma sobrinha de Dom Braz que não gosta de gente. Gosta mais de sua jaguatirica, Morena. E ela trará muitos problemas à família. Ela é a única que segue os homens nas suas explorações ao Sertão. É o "filho" que Dom Braz gostaria de ter tido. No meio disso tudo temos escravos e índios, e alguns são filhos naturais do patrão, que em geral tornam-se ajudantes de cozinha. “O Sertão, às vezes, é pior que a guerra, que a peste. É uma espécie de febre, que dá nos homens. Saem do conforto das casas para passar fome, sofrer os riscos, às vezes sem nenhuma vantagem.” Entram em cena também algumas figuras históricas como Borba Gato, que vai nos mostrar a rivalidade entre paulistas e outros grupos, na exploração do Sertão. Ocorre ao final dessa parte o casamento de Cristina e Tiago.
Na segunda parte, A Madama do Anjo, teremos a descrição de uma grande exploração em um monte, Monte Negro, onde paulistas e emboabas (forasteiros da Coroa de outras regiões querendo ter direito à descoberta do sertão), vão lutar palmo a palmo esse lugar desconhecido. Uma guerra sangrenta com muitas mortes. Há muita traição, emboscadas, conquistas e perseguições, por parte de um grupo e outro. Um dos grupos é chefiado pelo marido de Rosália, Bento Coutinho, com quem ela fugiu às escondidas, sem a aprovação da família. Ela o ama, mas não queria que o marido estivesse contra sua família. Enquanto isso, em Lagoa Serena, Isabel está grávida e desconfia-se que seja de um índio, Apingorá, que foi criado na fazenda que deixou a fazenda para formar uma comunidade para seu próprio povo. Mas, todos enganaram-se, porque o pai estava mais perto do que pensavam. Com essa desconfiança, Leonel segue para se vingar, em nome da família e comete atrocidades, e isso vai mudar seu comportamento, vai ficar uma culpa que o assola. Isabel tem o seu filho, Afonso, mas não cuida dele, não tem apego. É uma criança branca, o que faz todos reverem as suas desconfianças. As mulheres sozinhas em casa sofrem um revés muito grave, porque o povo que foi atacado por Leonel se vinga, e queima tudo. Elas se juntam, e conseguem reverter um pouco a situação, e Basília acaba tornando-se uma “guerreira”. Margarida continua sentindo muita falta do marido, e vendo coisas. E ao final teremos mortes pelo caminho, na casa e no sertão. “Entre aquelas postas sangrentas, alguma coisa cobrava vida e palpitava, querendo desprender-se dali. A mão de um jovem prendia no chão a ponta da bandeira ensanguentada, e a Madama do Anjo se levantava, em meio do horror e da desesperança da Morte.”
Na terceira parte, Lagoa Serena fica sabendo aos poucos do resultado da guerra entre paulistas e emboabas, e das mortes de pessoas próximas. Mas nada ainda é certo. Basília foge de Bento Coutinho, após saber do resultado da guerra, mas não por falta de amor, mas sim por fidelidade aos paulistas. Sabe-se que Leonel está perdido no mundo depois dos acontecimentos em sua casa. E acontece o inesperado: todos que sobreviveram são mal-vistos em São Paulo: “As donas de casa de São Paulo não compreendiam a volta de seus maridos, após aquela vergonha. Por que não foram às minas, vingar os trezentos mortos? Como poderiam entrar de novo em São Paulo do Campo de Piratininga, se estavam desonrados com a morte de seus companheiros?” E um dos membros da família ao voltar para casa será expulso e vai viver na casa de Margarida com a esposa. Cristina, nesse meio tempo, já estava de malas prontas para retornar ao Reino, mas com a notícia do retorno do marido, resolve que ficará até ele se restabelecer. Ficou muito fraco. E tenta descobrir a verdade sobre Isabel, mas Tiago não falará sobre o assunto, dirá apenas que é sua fraqueza, mas também sua força. E ao final todos irão reconhecer sua bravura na batalha tão sangrenta. Cristina começa a retornar ao Reino, mas Tiago sabe de sua gravidez e em um abraço a faz ver que apesar de toda a solidão que sente junto à essas mulheres, ficará com o marido. “Vou dizer-te uma coisa. As estrelas me haviam prometido alegria e triunfo. Não esperava que te fosses.”
Só para ilustrar, Laurentino Gomes em Escravidão, volume II, vai nos falar de duas figuras históricas que fazem parte desse contexto e estão presentes junto aos personagens: “Em 1707, graças ao carisma político e ao poder de seu exército particular, Nunes Viana foi aclamado pelos emboabas governador das Minas de Ouro, um cargo ainda inexistente na burocracia da colônia. A aclamação ocorreu à revelia da Coroa portuguesa e contra a vontade dos paulistas. Nessa condição, Nunes Viana logo entrou em confronto com o bandeirante Manuel Borba Gato, que até então mandava e desmandava no território em nome dos paulistas. Os ânimos foram se esquentando com escaramuças esparsas entre os dois lados até que um grupo de paulistas foi massacrado pelos emboabas no capão da Traição, na região do rio das Mortes, nas vizinhanças das atuais cidades de Tiradentes e São João Del Rei.” (pg. 103)