Roberto Soares 06/06/2021Pode propor uma boa reflexão, mas com uma base seriamente pobreOu "Falácias Admiráveis: como Theodore Dalrymple subverte a Psicologia".
O autor parece compartilhar da ideia de que o homem moral é aquele que toma totalmente para si a responsabilidade por sua própria condição e ações, sem se esquivar "culpando as estrelas", como Edmundo denuncia em "Rei Lear". Com isso, entendo que o que ele chama de subversão à moralidade são certos discursos cada vez mais propagados que fazem um mal-uso de conceitos das psicologias para afrouxar a responsabilidade dos sujeitos com as próprias condições e comportamentos.
Seria uma discussão extremamente pertinente e rica, se o autor não a tivesse construído sobre uma base tão porca. Discordo de grande parte das visões de Dalrymple, mas ainda assim sou leitor constante de sua obra, pois sua vasta experiência sempre traz reflexões muito oportunas para minha atuação pessoal e profissional. Acho importantíssimo consumirmos materiais com opiniões e teses que diferem das nossas (por isso adquiri o livro), porém também acredito que toda opinião e tese deve estar baseada em argumentos sólidos, ou pelo menos sensatos, e não é o que acontece aqui. "Evasivas Admiráveis" realmente me decepcionou pela frustrante exibição de falta de conhecimento efetivo do autor no assunto que ele se propôs a discutir de maneira tão veemente (e desrespeitosa): a saber, as psicologias, usando críticas reducionistas, falaciosas e sem nenhuma fonte registrada para desmoralizar meia-dúzia de escolas da área, acreditando assim invalidar toda essa complexa ciência que possui dezenas de correntes diferentes.
Porém uma reflexão (talvez a única) que o livro suscitou em mim é em como certos termos psicológicos, como ansiedade, depressão, gatilho, etc., vêm se tornando cada vez mais popularizados, em especial nas redes sociais, de forma, a meu ver, simplista e irresponsável. Acho impossível negar que há um fenômeno de patologização das frustrações cotidianas inerentes à existência humana, mesmo as mais comuns. O mal-estar que tais frustrações causa é rápida e levianamente rotulado como manifestação de sofrimento mental e tratado como tal, e um sujeito de má-fé (ou "devassidão", conforme citado por Dalrymple da peça de Shakespeare) pode rapidamente usar desse diagnóstico, muitas vezes autoimbuído, para se evadir de tomar decisões e se haver com sua parcela de responsabilidade tanto por ter chegado na situação em que se encontra, quanto na de sair dela. Como uma evasiva cômoda para não ter de lidar com a angústia e a falta que tais escolhas e responsabilidades podem trazer, eu digo "Não sou eu, é minha ansiedade, e ela apenas, quem me impede de finalizar projetos, ter um emprego e me alimentar bem; por causa dela sou assim e sempre serei." Nem preciso discorrer sobre o perigo dessa forma de encarar a vida, principalmente quando se trata de crianças (o que o próprio Dalrymple ilustra bem em seu livro "Podre de Mimados")
Muitas vezes, estes discursos patologizantes são encorajados por profissionais da psicologia, que fazendo, como eu disse, um mal-uso de termos e teorias da área, parecem cair no modismo e propagar uma certa guerra à frustração, ao invés do reconhecimento da sua inexorabilidade e seu papel na vida humana.
Em outros casos, grande parte destes discursos pregam que a satisfação de todos os desejos individuais deve ser alcançada em nome da saúde mental própria e coletiva, e que se algo surge como um obstáculo ou crítica ao meu desejo de realizar todos os meus impulsos, este algo deve ser encarado com uma ameaça intolerante à minha liberdade de expressão e de "ser eu mesmo".
Logo, as condições básicas para uma vida civilizada, o pensamento coletivo e o controle dos impulsos, caem por terra sobre o peso do politicamente correto e da felicidade total como um direito inalienável.
Julgo que não é preciso, claro, expor aqui o óbvio: de que as configurações externas da vida humana hoje, em especial neste período de pandemia, sejam sim um cenário potencializador de sofrimento mental. Também defendo que toda essa reflexão deve ser encarada com bastante responsabilidade e discernimento, para não tornar "vitimismo" as manifestações genuínas do transtorno mental de um indivíduo e sua conscientização, bem como as reivindicações de certos grupos pelo respeito e a livre expressão de suas identidades individuais.
Porém também devemos nos atentar a não encarar como sintomas de adoecimento em si aquelas angústias e sofrimentos regulares que fazem parte da existência humana. Claro, acolhendo-os em nossos consultórios e dando ao sujeito todo o suporte para que consiga sair dessa situação, mas sem perder de vista os aspectos que distinguem estes sofrimentos daqueles realmente frutos de um quadro de transtorno mental grave (por exemplo, o "estar deprimido" não é o mesmo que "estar com depressão", etc.).
Entretanto, como escreveu o próprio Dalrymple, "é claro que se pode dizer que a deformação popular de uma ideia ou prática não invalida a ideia ou prática." Pena que o autor não seguiu a própria sugestão.