Luiz Pereira Júnior 23/02/2024
O crime de pensar
Quase sempre incluído entre os melhores livros do século vinte, “Nós”, de Evgueny Zamiátin, é uma distopia. Mas não se deixe enganar por essa palavra, que, de tão usada como rótulo de vendagem para livros de fantasia (muitos de qualidade verdadeiramente discutível), acabou banalizando o Mal (para citar uma das maiores pensadoras de nossos tempos) e até mesmo desejável aquele mundo que, na teoria, deveria nos causar imediato horror e franca repulsa.
Resumo da ópera: após uma guerra de duzentos anos, o construtor-chefe de um foguete (o expoente máximo da tecnologia daquele mundo) decide contar sua experiência em uma sociedade que ele vê como a invenção maior da mente humana e, pouco a pouco, percebe o monstruoso jugo da classe política sobre todos os demais cidadãos. Nesse mundo, tudo é controlado pela matemática e pela razão, sendo o bem de todos absolutamente sobreposto ao direito individual; as casas são de vidro, sendo proibido o uso de cortinas ou de qualquer outro objeto que impeça o olhar dos que estão fora, exceto durante uma hora por dia; todos moram sós nesses cubos de vidro; caso alguém deseje uma relação sexual, deve se dirigir ao órgão governamental para marcar uma consulta médica e, ao fim, terá direito a um formulário rosa que será dirigido ao objeto de tal desejo sexual, tendo data e hora marcadas para essa relação; todos vestem o mesmo uniforme, não podendo retirá-lo nem mesmo dentro de casa; os pensamentos são controlados (e até mesmo uma espécie de telepatia se desenvolveu, já que todos pensam da mesma forma); a metrópole onde vivem é cercada por um muro e, do outro lado, está a natureza, que é abominada pelos habitantes dessa cidade como algo selvagem, primitivo e que deve ser evitado a todo custo; ter filhos de forma natural é crime punível com a morte; em caso de discordância do governo, o discordante é vaporizado em cerimônia pública, restando apenas uma poça d’água; todos devem seguir uma tabela de horários (todos devem acordar, dormir e fazer as refeições na mesma hora); todos devem comer a mesma comida (feita de petróleo); e por aí vai.
Um bom livro, sem dúvida, mas, pela segunda vez, não se engane. A linguagem é densa, há trechos repletos de conceitos matemáticos, a construção dos personagens é bastante aprofundada para aqueles que estão apenas procurando uma leitura fácil, há repetições (talvez para mostrar que todos os dias se repetem ad infinitum). E, sim, é um retrato do Estado comunista e, por tal motivo, o autor foi perseguido por um longo período de sua vida.
E, talvez, o mais surpreendente do livro seja justamente o fato de que alguns leitores o comprarão para passar o tempo, para se divertir. Mas “Nós”, de Evgueny Zamiátin, faz muito mais do que isso: faz pensar...