Ricardo Rocha 20/04/2011
Cafe de Flore, o filme, por conta das histórias paralelas e a perfeição de sua montagem num ordem estranhamente lúcida, fui reler e confirmei que talvez esteja aqui a raiz do recurso hoje banalizado do flash back - banalizado até quer dizer quando aparece alguém e faz um uso digno.
Não muito seguro aparentemente, Huxley se decide pelo tom do amor não correspondido e as conseqüências que daí advém para contar a parte de sua história que envolve o triângulo amoroso entre Walter, Lucy e Marjorie. Sem dúvida o pano de fundo do romance – o início de uma nova era em que a máquina passará a ter a supremacia e os sentimentos começarão a ser postos de lado não mais por tradições humanas mas simplesmente porque há que se viver e a vida e a vida agora é assim (a realeza representada agora por plebeus milionários, carros e aviões, música de jazz nas festas e no rádio, a ascensão social da mulher) – decerto deveria ter esse pano de fundo prioridade sobre os detalhes do relacionamento amoroso, ainda que se possa dizer que há uma relação evidente entre os relacionamentos e as transformações da época. Todavia, caso a época fosse retirada do romance, se por outra fosse trocada, ainda assim a abordagem da vida amorosa dos personagens faria todo sentido. Porque o poder é o poder sempre, algo com que Huxley nunca se relacionou bem, e o amor é o amor, que parece mais a sua praia.
O que quer Lucy? Apenas permanecer rica e poderosa, independente inclusive dos sentimentos? Naturalmente é mais que isso. Precisa também da rara serenidade dos momentos após o amor, quase como um repouso de ser ela mesma. E parece que só alcança isso com Walter, ou mais com ele. O que quer Walter: manter a relação sensual com ela, manter Marjorie, o manter seu emprego com um salário melhor? E Marjorie, ama tanto Walter a ponto de relevar a humilhação da amante do companheiro, ou simplesmente não tem para onde ir ou como se sustentar porque a nova era a apanhou como teria sido na antiga – sem uma profissão, é dependente de um homem e não há muito o que fazer quando o certo – apenas o sabe a convicção teórica – seria deixa-lo? Penso em Huxley escrevendo essas coisas com a mesma mente que buscará novas alternativas para a vida, à parte do mundanismo e do idealismo e em parte as achará no alucinógeno – o cético autor que não deixa que seus textos se desloquem nem para a razão extremada tendo a ironia como arma (que se tornará inócua e arrogante na guerra moderna contra os poderosos), nem para a imaginação que não venha acompanhada de uma torre de vigia segura para a observação da alma – algo com que nem o autor de Contraponto nem seus personagens parecem muito ocupados.
Walter tem sua responsabilidade no trabalho. Os tempos não são fáceis para se conseguir uma ocupação bem remunerada. Lucy agradece os novos tempos em que um avião a pode impedir de ficar mais de dois meses num mesmo lugar, o que a faria murchar. Marjorie inveja a vida dessa mulher, mais que isso, inveja-a simplesmente, como mulher, seu jeito divertido e sua vivacidade, que possivelmente sejam o que faz com que seu homem seja mantido de tal forma escravizado, como a própria Marjorie gostaria de manter. A companheira de Walter tinha sido educada na crença da fealdade do vício e da parte animal da natureza humana, na beleza da virtude e do espírito. e, fria por natureza, tinha, da mulher fria, a total incompreensão da sensualidade”. Assim, Huxley tece sua teia em torno dos relacionamentos; mas em nenhum momento parece tão contundente como estará em “Admirável mundo novo”, onde o sarcasmo perante o mundo que nascia se tornará obscurecido pelas sombras desse mundo já cristalizado e ele mesmo se tornará sombrio.
Contraponto não tem nenhuma importante inovação técnica, nem se pode dizer que Huxley seja literariamente um virtuose. Seu grande mérito está no domínio da objetividade, mesmo nas passagens mais subjetivas. É como se, apesar de toda mudança por que o mundo e consequentemente as pessoas e o modo de se relacionarem passavam, isso de fato não importava tanto. Como se tudo aquilo não passasse na verdade, pessoas e épocas, de uma gota desprezível no mar do perpétuo presente prestes a ser revelado.