Lucas 16/07/2021
Mistura agridoce (e não necessariamente colorida) entre romance novelístico e história real da Revolução Russa
A literatura, este tópico que traz consigo tantas sensações e emoções ao longo da história da humanidade, possui uma relação irrestrita com os eventos que o passar dos anos trazem. Períodos de grande ruptura histórica (a Revolução Francesa, a Revolução Industrial, as duas grandes guerras mundiais ocorridas no século XX, a divisão do mundo em dois grupos antagônicos que caracterizou a Guerra Fria, etc.) funcionam como grandes insumos para que a literatura dos países envolvidos, direta ou indiretamente, com estes eventos, passe por impactos significativos. Mudanças sociais marcam gerações, e a geração que presencia e protagoniza um evento traumático usa da literatura para deixar a sua percepção daqueles momentos para a eternidade.
Boris Pasternak (1890-1960) foi um russo com grande vivência neste tipo de evento. Na verdade, todo russo que viveu e sobreviveu no país durante a primeira metade do século XX certamente viu coisas que nenhum outro indivíduo de nenhuma outra nação viu. Tal constatação pode parecer ousada, mas caso alguém discorde, é preciso achar outro país que tenha passado por convulsões sociais, dois grandes períodos de miséria, guerra civil, invasores estrangeiros (entre 1916 e 1917 na Primeira Guerra Mundial e entre 1941 e 1944 na Segunda Guerra Mundial), uma revolução sangrenta com forma e desfecho inéditos até então na história da humanidade e uma ditadura notabilizada não somente por sufocamento de liberdades, mas por fuzilamentos e trabalhos forçados. Pois foi isso tudo que aconteceu no Império Russo/União Soviética entre 1900 e 1950... Inegavelmente, quem presenciou tudo isso in loco tem muito a contar para a eternidade.
Desse modo, Doutor Jivago, a mais conhecida no Ocidente das obras de Pasternak (que na Rússia é mais conhecido pelas poesias), traz consigo um peso histórico de grande relevância. Algumas sinopses e análises mais entusiásticas comparam a obra com o absolutamente incomparável Guerra e Paz (1865-1869), de Liev Tolstói (1828-1910), algo que revela-se, contudo, forçosamente comercial com o passar das páginas de Doutor Jivago (a única relação de Pasternak com Tolstói é o fato de o pai daquele ter sido ilustrador de várias obras do criador de Guerra e Paz).
Então, antes de falar especificamente do enredo de Doutor Jivago, é importante deixar claro que o livro não pode ser comparado sobre nenhum aspecto, seja com Guerra e Paz ou qualquer outra obra da chamada Era de Ouro da literatura russa. Tal fato, entretanto, não é demérito algum; Doutor Jivago tem suas falhas, mas no geral é um livro que espelha de forma dramática a realidade sobre a qual ele foi concebido.
A obra debruça-se sobre a Revolução Russa de 1917, o primeiro dos grandes eventos supracitados que sacudiram o então Império Russo no início do século XX. Neste caso, não foi um simples "sacudir": foi mais a "simples" extinção brutal de todo um sistema praticamente feudal mantido por uma dinastia secular, que controlava o maior e mais populoso país europeu daqueles tempos. A Revolução Russa, protagonizada por elementos mais subalternos da sociedade (em especial, o proletariado), promoveu a primeira experiência baseada nos ideais de Karl Marx (1818-1883) numa sociedade. Seu caráter de vanguarda contrasta, entretanto, com seus métodos e táticas para consolidação destes ideais.
Se o leitor tem pouco conhecimento do que aconteceu na Rússia dos anos posteriores a 1917, pode basear-se na jornada de Iúri Andréievitch Jivago, que Pasternak usa-o como fio condutor de suas descrições na obra. Não que o leitor terá uma percepção cristalina do "modus operandi" da revolução somente com o olhar do protagonista, mas a sua trajetória ilustra a balbúrdia coletiva que se seguiu com a deposição do regime czarista.
A obra conta a vida de Jivago desde os seus primeiros anos. Criado por uma família de classe média, ele torna-se um excelente médico. Além disso, suas aptidões poéticas o acompanham em todo livro (e são demonstradas no epílogo da edição da Companhia das Letras, que traz consigo 25 poemas do protagonista). Como ele fazia parte de um intelecto raro na Rússia daqueles tempos, a sua percepção sobre os brutais acontecimentos da Revolução Russa são bons parâmetros para que se entenda o que foi esse evento nos anos posteriores: inicialmente um defensor apaixonado pelos ideais da revolução (que eclodiu enquanto a Rússia participava da Primeira Guerra Mundial, o que foi um ingrediente a mais para o caos que se instalou), o leitor perceberá em Jivago uma vagarosa mudança de postura com relação a este entendimento.
De uma forma geral, é esta a justificativa para que Doutor Jivago tenha sido perseguido pelos censores soviéticos quando se soube que ele estava pronto para ser lançado, por volta de 1955. Mesmo que naquele momento a União Soviética estivesse vivendo um processo de "desestalinização" praticado pelo então dirigente soviético Nikita Khruschev (1894-1971), Pasternak foi sumariamente perseguido em função do caráter "acintoso" do seu romance. O ápice de tal perseguição foi a desistência forçada do autor em receber o Nobel de Literatura, que ele havia vencido em 1958.
Este rótulo traz, contudo, uma expectativa depositada na obra, que se mostra incapaz de cumpri-la. Deve-se isso primeiramente a tônica de romance que Pasternak usa em torno do seu protagonista, que se vê num triângulo amoroso entre Tônia e Lara. Assim, o livro carrega consigo uma toada "novelística", e dentro dela, Iúri toma uma série de decisões erradas, que revoltam o (a) leitor (a) que gosta das peripécias narrativas típicas do estilo. Por outro lado, tomando-se o Iúri protagonista da obra, atuando na narrativa, tem-se uma concepção diferente e é até razoável que se sinta simpatia por ele. Mas neste dualismo de personalidades, o leitor possivelmente não chegará à uma conclusão definitiva. Construir personagens complexos é um desafio para qualquer escritor, mas Iúri Jivago tem uma complexidade que não cativa em todos os momentos. O que fica dele, no entanto, é a por vezes ávida crença nos seres humanos, nas subjetividades das escolhas, na percepção de que o destino de cada um é aleatório... Ao acreditar nisso, Jivago vai cada vez menos se reconhecendo dentro da nova Rússia que ele ajudou a criar e essa desesperança sensibiliza o leitor.
Aliado a este aspecto romanceado, cujas nuances podem ser analisadas na leitura da obra, Pasternak emprega a coincidência de uma forma desproporcional. É chocante que em cidades enormes como Moscou ou São Petersburgo haja tanta chance de ocorrerem coincidências com tanta naturalidade. E ela não envolve só personagens secundários que cruzam-se entre si, mas também locais, objetos, cujas menções são oportunamente recorrentes. Não é uma crítica ao método, afinal de contas, são dezenas as passagens literárias universais inesquecíveis que se baseiam em maior ou menor grau de concomitância; o que há aqui é um uso desenfreado desse artifício.
Por fim, uma última ressalva é a relacionada ao tratamento dispensado aos personagens de uma forma geral. No início, o autor apresenta dezenas de personagens e alguns núcleos com motivações aparentemente interessantes. O leitor pode até confundir-se neste manancial de indivíduos, mas isso não fará muita diferença: os últimos três quartos da obra "esquecem" quase que completamente personagens promissores apresentados nos primeiros 25% da narrativa. Muitos aspectos relacionados à Revolução Russa e à posterior guerra civil poderiam ser descritos sobre estes núcleos, mas fica esse "limbo"... E, inevitavelmente, sobram pontas soltas no final, histórias de indivíduos que não são claramente resolvidas.
Apesar de todas estas ressalvas, a leitura traz momentos de brilhantismo literário, expressado por meio de cenas fortes e diálogos marcantes. Ambas são fiéis em traduzir ao povo não russo os sofrimentos da população daquele país, que passou por inúmeras privações de várias naturezas, já citadas no início deste relato. As andanças de Iúri Jivago pelo vasto interior da Rússia mostram o horror de um processo que acabou por conduzir o país a um sangrento regime, que foi, ao custo de milhares de vidas, tornando-se obsoleto com o passar das décadas. A postura política de Iúri também simboliza que ideologias vem e vão e que nenhuma delas merece ser defendida com afinco extremo porque se isso ocorrer só há dois destinos possíveis: a desilusão ou a cegueira doentia e seletiva.
Todos estes ângulos de análise fazem de Doutor Jivago um romance sem enredo. Na vida real, muitas vezes nos deparamos com lembranças de pessoas ou situações passadas que não sabemos como estão hoje ou que fim levaram. Talvez, por esta explicação, Pasternak quis que Doutor Jivago tivesse uma concepção mais natural da vida de cada um... Mas na ficção, algumas coisas devem realmente se resolver, ainda mais porque a obra é fantasiosa em algumas outras ações dos seus personagens. Desta forma, fica a impressão de que o livro perde-se numa gangorra formada por romance novelístico e realidade da Rússia do início do século XX.
Uma breve pesquisa sobre a biografia de Pasternak traz uma série de elementos que se associam a Iúri Jivago: eram ambos patriotas (o autor sempre fez questão de condenar o exílio, mesmo que voluntário), poetas, grandes pensadores, tiveram uma vida de desilusões e conflitos e a solidão sempre os envolveu como pano de fundo. Seja em seus defeitos ou pontos altos, Doutor Jivago vale a leitura pelo entendimento da história da Revolução Russa contada sem maiores detalhes por cidadãos comuns, em conjunto com um romance ficcional que não cativa, mas emociona em momentos pontuais.