gabriel1994 24/07/2023
Águas-vivas do mundo todo
Crônica do Pássaro de Corda não é o melhor livro de Murakami que eu já li. É importante destacar isso, pois não significa que seja ruim - mas sim uma experiência interessante com esse autor que, aliás, é o meu favorito.
Em Crônica do Pássaro de Corda, nós acompanhamos Toru Okada, um homem desempregado, sem um pingo de ambição e com um casamento em situação - para dizer o mínimo - preocupante. Em meio a isso, seu gato desaparece, e Kumiko, sua esposa (bem apegada ao gato), faz um pedido simples ao marido, mas com consequências transformadoras. Ela pede que Okada consulte uma conhecida da família, a fim de que o paradeiro do gato seja solucionado. E é aqui, nesse ponto aparentemente simples, que a vida de Toru Okada muda de forma estranha, o colocando numa jornada de acontecimentos que o tiram de sua rotina ordenada, e o fazem encontrar uma adolescente que se recusa a ir à escola, preferindo trabalhar com pesquisas sobre pessoas com "pouco cabelo", uma dupla de irmãs misteriosas que levam o nome de ilhas, o seu tão odiado cunhado e tantos outros personagens excêntricos.
Okada se vê nas mais estranhas situações na tentativa de colocar sua vida de volta aos trilhos e solucionar o mistério que o colocou nessa delicada situação: o gato. Tudo isso enquanto um pássaro faz "ric-ric-ric" e dá "corda ao mundo".
De fato, um prato cheio para o leitor habituado com as histórias cheias de realismo mágico, gatos, mulheres misteriosas, sonhos estranhos e todos os outros recursos que permeiam os livros de Murakami.
Crônica do Pássaro de Corda é considerado a obra clássica de Murakami por conta da reunião mais completa de todos os elementos que são sua marca registrada e abordando assuntos simples e cômicos, assim como complexos e filosóficos.
O amor, os males da sociedade moderna, a fragilidade das rotinas e do destino - principalmente das rotinas. Para mim, esse é um dos pontos principais da trama: o terror que vem com as mudanças repentinas das rotinas; o terror das mudanças no geral. Mudanças que deixam as fraquezas humanas totalmente despidas e vulneráveis. Essas mudanças rápidas e confusas que vêm toda vez que o pássaro dá corda, deixam Okada preso num ciclo infernal sobre não saber o que de fato está acontecendo.
Os relacionamentos são outro ponto crucial. Logo no começo do livro, Okada abre o capítulo dois (intitulado "Sobre a lua cheia, o eclipse solar e os cavalos que morrem no estábulo") com a seguinte pergunta:
"Será que é possível uma pessoa entender completamente a outra?"
(p. 30)
Essa frase faz referência ao casamento de Okada e Kumiko, uma linha tênue que se rompe numa atmosfera envolta em mistérios. Frase que também faz referência à forma como Murakami trabalha a questão dos relacionamentos no geral. O autor descreve muito bem os sentimentos mais complexos de forma muito real - esse recurso é muito presente em outra obra sua, "Sul da fronteira, oeste do sol". Outra questão crucial sobre os relacionamentos de Okada é a presença de seu cunhado, Noboru Wataya, que dificulta não só a vida do nosso protagonista, mas também de vários outros personagens como Creta Kanô (uma das irmãs com nome de ilha) e a própria Kumiko. Okada deixa clara a indiferença que sente por Wataya, mas seu cunhado será como uma sombra o perseguindo - representando algum relacionamento que, não importa quantas vezes tentemos afastar, nunca vai embora, seja por obra do destino ou porque a tentativa de fim não foi eficaz o suficiente.
"Ficaria muito feliz se não precisasse me encontrar com ele nunca mais.
Malta Kanô balançou a cabeça algumas vezes.
Infelizmente o senhor terá que se encontrar com o sr. Wataya mais algumas vezes. É inevitável."
(p. 239)
Não é só essa frase de Malta que tem um tom profético, mas a obra inteira carrega essa característica.
Esses são apenas alguns exemplos dos elementos usados por Murakami para compor a sua trama, elementos esses com significados literais ou figurados - às vezes ambos em um único elemento.
Mas há outro elemento principal que merece ser citado - o fluxo. Quase tudo em Crônica do Pássaro de Corda tem um significado muitas vezes filosófico ligado ao passado dos personagens, significado presente até nas descrições de cenários. O que não significa que esses significados serão explicados. Uma coisa que toda pessoa que lê ou quer começar a ler Murakami precisa entender é: nem sempre as coisas vão ter uma explicação - essa é a graça, a vida também é assim.
Uma dessas coisas sem explicação (aparente) é o fluxo. O fluxo é apresentado pela primeira vez a Toru pelo sr. Honda. O fluxo desempenha um papel importante na história, mesmo que o leitor não saiba que papel é esse. Na minha opinião é um dos melhores recursos que Murakami usa aqui.
"Você não deve obstruir o fluxo: deve subir quando tiver que subir e descer quando tiver que descer. Quando o fluxo estiver para cima, basta encontrar a torre mais alta e subir até o topo. Quando o fluxo estiver para baixo, basta encontrar o poço mais fundo e descer as profundezas. Quando não existir fluxo, basta ficar parado. Se você obstruir o fluxo, tudo seca. Se tudo secar, o mundo vira um lugar de trevas. 'Eu sou ele, ele sou eu, noite de primavera'. Quando abandonamos o eu, o eu se manifesta."
(p. 60)
O tal fluxo leva Okada ao fundo de um poço (literalmente), onde há um longo diálogo com o 'eu' de nosso protagonista. Um diálogo em meio ao vazio de um poço e ao vazio do estado de Okada. Edisson Schwartzhaupt, ao escrever sobre a obra, diz o seguinte:
"Aqui o vazio configura uma relação budista - o pai de Murakami era dono de um templo budista - e acarreta um significado transposto para sociedade japonesa moderna."
(A relação de Murakami e seu pai é explorada em seu livro "Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai").
É interessante citar que Murakami não é tão bom em diálogos (pelo menos é assim que eu vejo). Acho que ele mesmo reconhece isso; há uma falta de naturalidade nos diálogos de seus personagens, que ele compensa dando características totalmente fora do padrão aos mesmos - assim, os transformando em diálogos mais críveis... na medida do possível.
Mas aqui Murakami transcende em questões de escrita, principalmente nos diálogos. Arrisco dizer que Crônica do Pássaro de Corda é melhor em termos de escrita do que "O Incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação", do mesmo autor.
Ao usar a maestria de sempre na escrita, com todos os recursos narrativos que ele sabe usar muito bem, acrescentando os diálogos em sonhos - que são pura loucura, no melhor sentido da palavra -, cartas, recortes de reportagens e até troca de mensagens (o cap. 23, intitulado "Águas-vivas do mundo todo, o que estragou").
Não é surpresa para nenhum leitor habituado que Murakami gosta de repetir sempre os mesmos elementos em seus livros... repetitivo não significa algo que satura - não necessariamente.
Por mais impressionante que seja Crônica do Pássaro de Corda, é importante lembrar que nenhum livro é perfeito. A extensão do livro (767 páginas) me permitiu refletir sobre a escrita, narrativa e recursos do autor. Embora Murakami repita elementos em suas histórias, o resultado pode variar dependendo da história e da forma como ela é contada. Neste caso, a repetição de mistérios sem aparente solução ao longo da trama pode se tornar desgastante.
Aqui, na obra em questão, acho que o resultado foi menos prazeroso.
Murakami continua sendo um colosso na escrita, narrativa e principalmente na criação de universos e em como eles funcionam.
Em suma, "Crônica do Pássaro de Corda" é uma obra impressionante de Haruki Murakami, que consegue cativar com sua mistura única de realismo mágico, personagens complexos, momentos cômicos, atmosfera profética e reflexões filosóficas. A experiência de ler esse livro é marcada pela imersão em um universo intrigante, que Murakami cria, o fazendo ser repleto de símbolos e significados que, mesmo não tendo sua explicação total, enriquecem a obra em toda a sua complexidade.