Marselle Urman 02/07/2020
Pegue seu cobertor e siga adiante...
Estava querendo ler Moby Dick há meses. Ainda não consegui...mas a busca da Amazon me recomendou esse livro com base na minha busca. Como de cara já gostei do título, vi algumas avaliações e resolvi tentar.
**** NÃO RECOMENDO PARA LEITORES INICIANTES ****
Não, não por causa do volume. Afinal acredito que qualquer um pode ler as mais de 3.000 páginas da saga Harry Potter, por exemplo. Digo isso por causa da densidade...Não é uma história fácil de digerir. Queria só não ter feito a busca por "northwest passage" no Google. Tomei spoilers terriveis. Avante...
O primeiro capítulo já conseguiu me tirar do meu sofá confortável e me jogar lá, no HMS Terror, navio preso no gelo, literalmente, na noite sem fim de um inverno ártico. A agradáveis -45?C de temperatura exterior.
Conheça o capitão Crozier. Irlandês turrão e bravo, fazendo carreira na Marinha Real Britânica, aquela força magnânima dos sete mares do tempo das grandes navegações. A idéia comum da Royal Navy sintetiza o espírito britânico de meros 150, 200 anos atrás : o oficial bravo, cavalheiresco, imbuído do espírito de aventura e desbravamento, singrando os mares com sua rígida disciplina, tecnologia de ponta e sem deixar de lado sua classe e fair play, destinado a descobrir e dominar terras remotas, e ensinar a civilização a selvagens bárbaros e inferiores por onde passarem.
Esquece isso, amassa a maior parte e joga no lixo. Vou, a custo, deixar de lado meus comentários pessoais sobre o orgulho eugênico, que sabemos ser real nesse cenário. Vou focar nessa fotografia adorável e odiosa d'OTerror, na Noite Sem Fim do Polo Norte em 1848.
Encontramos o capitão Crozier no convés de seu navio, preso na noite de vários meses do sol que não brilha, entre homens congelando. Presos há dois anos. Chamado a cuidar de um marinheiro rebelde, que se recusa a levar sacos de carvão até a caldeira no porão inundado e congelado, porque teme que o fantasma de outro marinheiro falecido o assombre lá em baixo. No caminho, o capitão, que quase não dorme, avalia suas sentinelas no convés, bem como os homens já famintos e adoecidos dormindo em suas redes entre os sons reconfortantes de seus próprios roncos e peidos. Sem ligar para o barulho deveras mais preocupante do gelo, lá fora, se movendo e espremendo o navio, sem pressa rompendo seu casco. Ele pensa brevemente na única mulher a bordo, a esquimó Lady Silêncio, encontrada por uma expedição em "terra" (gelo, tudo é gelo), sua mudez absoluta causada pela língua arrancada há anos pelo que parece ter sido uma mordida, mistério. Pensa na má sorte de ter uma mulher a bordo, ainda mais uma selvagem, mas não poderia abandoná-la à própria sorte "lá fora", depois do que aconteceu...Sobretudo, espera que os barulhos que ouve sejam somente os ratos, aqueles que nesse momento estão comendo os cadáveres empilhados congelados na Sala dos Mortos no porão. Que não seja A Coisa lá fora, A Coisa do Gelo. Isso sem contar a serpente peçonhenta que, sem saber, leva a bordo.
Temos a narrativa intercalada pela visão de vários personagens que fazem parte da expedição dos dois navios, buscando encontrar e mapear a mítica "Passagem Noroeste", onde nenhum homem 'civilizado' esteve. O principal é o próprio capitão Crozier, que se aferra a seu uísque e à memória de seu amor frustrado em terra, para ser o melhor capitão possível para o inferno que encontraram. Outro é o anatomista Goodsir, auxiliar de saúde entre 4 da tripulação, cirurgião encarregado de cuidar das queimaduras de gelo, suturar feridas abertas e emendar ossos quebrados, ministrar tratamentos experimentais às vítimas do escorbuto. Homem de estudos, jogado na bruta realidade da expedição, ele foi forjado à força. Ainda temos o tenente Irving, querido pela maioria, jovem oficial brilhante, mestrado nas artes do amor na sua terra pátria mas ainda assim apaixonado pela mulher esquimó. Outro, é Sir John Franklin, laureado comandante mor da expedição, agarrado a essa oportunidade de liderança e redenção depois de fracassos em sua carreira, devidos majoritamente à sua natureza bondosa, porém fraca. Sir John, conhecido por ter, numa expedição difícil no passado, comido seus próprios sapatos para não ser obrigado a canibalizar marinheiros falecidos. Não foi talhado para seu cargo, ao contrário do capitão Crozier, mas dele muito se orgulha, em sua enorme cabine no navio HMS Erebus, cercado dos possíveis luxos como taças de cristal, porcelana, radiola, relógio de seu tataravô. Sir John, que com suas decisões estúpidas, condena a vida de diversos homens ao inferno. Há outros narradores, ainda.
Difícil falar mais, sem maiores spoilers. Só tenho a dizer que era difícil largar o livro. E sempre precisava ler sentada ao sol, ou embaixo de cobertores, tamanha a imersão. Não há consolo ou brancas nuvens, aqui. Lembro de avançar com espanto, sobre as condições cada vez piores que esses homens enfrentaram. Quando você pensa que eles estão na merda - perdoe meu francês - aí você descobre que aquilo era um mar de rosas perto de quão fodidos eles logo estarão.
"Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais", anuncia o portal dos infernos de Dante. Acho que a expedição Franklin merecia mais esse aviso. A vida é uma coisa persistente, meninos e meninas...porque euzinha, em diversas ocasiões, preferiria morrer a ter que passar por aquilo.
Daí temos os últimos 10% do livro.
Ele parece quase ser outra coisa, e ainda assim dança belamente com nossa estória principal. Ele traz sentido, poesia e redenção. Redenção inclusive do orgulho eugênico que mencionei. O inferno permanece sendo o que foi, veja bem. Mas esse desfecho tirou um pouco do travo ácido dos anos de desesperança e desgraça.
Gostei imensamente.
Caraguatatuba, SP, 01/07/2020