Pancho Villa não sabia esconder cavalos

Pancho Villa não sabia esconder cavalos Adriana Brunstein




Resenhas - Pancho Villa não sabia esconder cavalos


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Krishnamurti 23/10/2017

Pequenas odisseias do cotidiano
Pequenas odisseias do cotidiano é como André Ricardo Aguiar define a obra “Pancho Villa não sabia esconder cavalos”- Contos, da escritora Adriana Brusntein, que a Editora Laranja Original lança dia 25 próximo em São Paulo . Os textos reunidos no volume têm alguma coisa de crepuscular, situam-se a meio caminho do relato clássico e do conto desestruturado que se vem praticando, via de regra breve, resumido, que adquire tom de fábula (com material sempre extraído do cotidiano). São miniaturas ou vinhetas de conto. E ainda assim, no curto espaço dos textos, a autora demonstra a capacidade de concentrar dados aparentemente difusos, criar atmosferas ficcionais rarefeitas, sugerir e inquietar.
A temática aporta nas as mais diversas questões que assolam o homem do século XXI imerso numa conjuntura dominada pelo dinheiro, pela inversão de valores, pelo egoísmo, pela erotização desenfreada e finalmente pelo hedonismo mais imbecilizante de todas as eras em que a nossa especiezinha safada pisa nesse planeta, (olhem que já vamos entrando no clima da autora). Em cena o nosso caos e barbárie e, talvez por isto mesmo, a linguagem da obra assume a crueza de seu conteúdo, sintetizado no desencanto com um cotidiano altamente regrado, previsível e normatizado em todos os seus aspectos. Daí personagens em sua grande maioria, em situações de tensão ou desespero conformado e sobretudo, desesperança. Adriana lança mão por outo lado, de uma linguagem coloquial onde sobressai um humor que não deixa de aliciar o leitor. “Tipo assim”:
“Não tem ninguém muito normal por aí, no fundo tá todo mundo usando uma camiseta imaginária com alguma palavra tipo “roubada”. Mas ninguém mais lê porra nenhuma hoje, fica todo mundo na punhetagem do Keep calm e qualquer coisa quando na verdade tá fervilhando por dentro e tentando dar, qual o termo mesmo? Vazão. Vazão aos sentimentos.” P. 72.
E nessa de dar “vazão aos sentimentos”, em verdade, em verdade, vamos é amalucando cada vez mais. Em outras personagens, há um acordo com a vida; aderem ao que ela é, de alto a baixo, sem nada recusar das suas ironias e das suas grandezas, nem das suas servidões. À falta de condições para reagir e interagir, limitam-se a aceitar as regras do jogo que lhe são impostas.
“Eu hoje não vejo a vida muito além da gente tentando colocar uma dose de glamour no que não tem a mínima graça.” (P.114), porque segundo tal visão que vai se generalizando, "a gente sempre acaba com uma picareta na mão quando tudo em volta já foi destruído”. P.123.
Se observarmos a panorâmica de imagens expressivas montadas pela autora, e que “empilhadas sugerem o esfacelamento da experiência de vida do mundo”, podemos entrever como num mosaico, como e porque o homem se perde cada vez mais desde tenras idades:
“Éramos crianças tentando parecer felizes mesmo com o excesso de cloro. Em determinado momento fui esfregar os olhos e a parte de cima do meu biquíni subiu, deixando à amostra os seios que eu não tinha. Então a garota passou por mim e disse: ‘Não tem vergonha, putinha?’. Tudo ao redor estava embaçado demais para que eu entendesse que uma vida diferente estava só começando”, p. 110.
E não é que a vida que mal começa, fatalmente nos leva com o tempo, ao tal do amor, ou o que pensamos que ele seja, inclusive cometendo as loucuras mais descabeladas que as mulheres cometem?
“Eu sempre vou te pedir para ficar um pouco. Eu tenho mil histórias na manga pra impedir que você chegue à saída mais próxima” p.36
E as inseguranças dos machos todo-poderosos?
“Aí ela olhou pro relógio e disse que tinha que ir embora. Daquele jeito que a gente sabe que não volta mais. Eu ia fazer o quê, cara? Nunca tive as manhas de chorar na frente de ninguém. Aí finji que minha lente de contato tinha saído do lugar. Ela não perguntou desde quando eu usava. E eu nunca usei. Quando eu era moleque eu queria mesmo era os óculos do Christopher Reeve. Mas aí ele caiu do cavalo e fodeu com tudo. Ninguém nasceu pra ser super-homem, cara. Ninguém.”. p. 93.
Em alguns textos a prosadora (que é também dramaturga e roteirista), introduz misturados, elementos de humor, dramaticidade e sugestão que fazem as histórias adensarem-se e impor significados. Um humor às vezes sarcástico, como este que foca nas imensas diferenças de sensibilidade entre machos e fêmeas que entretanto, não se largam jamais:
“Mulher é um troço que me enche o saco. Pra você ter uma ideia, ela tem esse lance com filme francês e filme francês me enche mais o saco que mulher. Era a história de um americano fazendo não sei o quê em Paris, ele acaba se apaixonando por uma puta. Uma hora lá ele tá sentado, ela de pé, e ele pede pra ela ficar de costas pra ele. Eu sei que ele dá uma abraçada na bunda dela, que meu irmão, fiquei de pau duro na hora. Aí ela se ofendeu, disse que eu era insensível, que me atinha só ao frívolo ao invés de prestar atenção nas entrelinhas”. P. 89
As entrelinhas de Adriana sugerem e aliciam o leitor também quando propõe enigmas existenciais. Aqui temos um exemplo de personagem, que uma vez perdida a inocência, têm consciência do que faz, ou pelo menos o suficiente vislumbre de consciência para se manter à distância do devaneio escapista. Ela vê, sente, sofre – e tira conclusões de quem se desencanta e em estado de desencanto permanece, ante o envelhecimento que, segundo sabe, se avizinha no irremediável do tempo que passa.
“aos 13 acreditamos em coisas estúpidas como ‘bater cinza de cigarro na cerveja dá barato’. Aos 23 acreditamos em coisas estúpidas como ‘eu te amo’. Aos 33 acreditamos em coisas estúpidas como ‘lista de pessoas que morreram de maneira estranha aos 33 anos’. Aos 43 acreditamos em coisas estúpidas como ‘ah, você ainda é nova’. Até um dia em que você estaciona seu carrinho de supermercado na frente da prateleira de condimentos e alguém que acaba de acreditar em um ‘eu te amo’ começa a falar ‘senhora...senhora...senhora’. Quando você se toca que é com você, a garota que acaba de acreditar em um ‘eu te amo’ já está bufando e manobrando o próprio carrinho pra passar por outro lugar”. P.47.
Entretanto, como escreve Tadeu Sarmento no prefácio à obra “dentro de nós, há algo de temerário, algo de vivo e de corajoso, que quer viver a todo custo, apesar de conhecer os perigos que se escondem nesse jogo medonho”. Todos temos direito à indispensável ração de sonho:
“Todo dia”... “garotas usam o dedo indicador que ainda não descobriu novos caminhos pra desenhar um coração no espelho embaçado do banheiro, depois uma flecha, depois a mão espalmada para apagar tudo. Alguns caras encostam a cabeça na janela do ônibus só pela sensação de que algo ainda vibra até a próxima parada". P. 128.
Adriana Brunstein, em que pese o acentuado desencanto, mostra-se narradora consciente dos pequenos dramas provocados pela tragédia essencial do ser e pela tragédia da vida em uma sociedade falida como a nossa que violenta, emudece e constrange, e por cima, impõe mordaças e coleiras invisíveis a olho desarmado. Nessa autora não há lugar para utopias. Parece-nos que sua prática literária tem uma única meta: neutralizar a alienação e a ilusão nas quais vivemos a fim de buscar aquela convivência crítica que, partindo da indignação quanto ao conformismo, se viabiliza na reflexão e produz transformação de modo a que, quem sabe um dia, deixemos de ser esse imenso bando de crianças “entediadas antes do tempo”.
Livro: “Pancho Villa não sabia esconder cavalos” – Contos, de Adriana Brunstein, Editora Laranja Original – São Paulo, 2017, 135p.
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1