Luíza | ig: @odisseiadelivros 16/04/2020Leitura de quarentena #3Há uma perspectiva da Rússia diferente neste livro, que até então não vi representada em Tchekhov, Gógol e Dostoievski. E, se vi, foi de forma muito tímida. A perspectiva é a da mulher russa do século XIX.
A autora, como tantas outras que escreveram no período, foi apagada pelo cânone maioritariamente masculino. Quando me propus a ler literatura russa neste ano, uma questão que me incomodou foi a de que não havia mulheres na minha lista – são até difíceis de encontrar, na verdade, ainda mais publicadas e traduzidas no Brasil. Encontrar “A moça do internato”, portanto, foi um alívio e, mais ainda, ler a respeito da visão da mulher (escrita por uma mulher) sobre a sociedade russa.
O livro é curto e conta com uma introdução acerca da autora e do contexto histórico em que viveu. Não tenho muito conhecimento sobre o assunto, mas, a partir do que nos é apresentado, pude perceber que houve um período na literatura russa em que a preocupação sobre as questões femininas foi ressaltada por meio da literatura. E, com isso, mais mulheres tiveram um espaço, ainda que modesto, para escrever tanto prosa quanto poesia. Nesse contexto, Nadiêjda Khvoschínskaia escrevia.
A protagonista da história é, de certa forma, um reflexo de Nadiêjda. Liôlienka, a protagonista, não aparece de imediato na história. No primeiro capítulo, somos apresentados a Veretítsin, um funcionário público que, aparentemente, não possui um histórico civil muito bom, pois é acompanhado pela polícia. Além disso, é um jovem que profere longos monólogos acerca da monotonia e do fracasso de sua vida, pois se mudou de Petersburgo, onde atuava como professor, para a pequena cidade em que sua irmã morava.
Nessa cidade, tudo acontece de modo muito provinciano e as pessoas não possuem oportunidades para melhorar de vida. Tudo é monótono, ainda mais para espíritos inquietos, como de Veretítsin e Liôlienka. Eles são vizinhos e começam a conversar com provocações de Veretítsin dirigidos à garota. Em um primeiro momento, Liôlienka não sabia que aquele primeiro contato mudaria a sua forma de ver o mundo e relacionar com as pessoas. As conversas com Veretítsin, por mais simplórias que pareçam, a fazem refletir sobre sua vida em família, no internato em que estuda e, em seguida, a fazem pensar em como poderia mudar de vida.
A vida de uma mulher na Rússia no século XIX não era fácil. Apesar de estudar em um internato que seu pai, um funcionário público, pagava com muitos sacrifícios, ela logo se dá conta de que aqueles ensinamentos de nada servirão para sua vida futura. Seu futuro estava destinado a um casamento com um homem medíocre. Além disso, o internato incentivava a rivalidade feminina, de forma que todas as alunas queriam ser melhores do que as outras para ascender de turma. No entanto, isso de nada serviria já que elas não poderiam ir à universidade, por exemplo.
O caminho de Liôlienka é árduo, pois lida com questões de crescimento também, da passagem da infância para a juventude – juventude essa pouco aproveitada, pois ela precisa se casar aos dezesseis anos. Há, ainda, a postura de sua família diante dela. Seus pais só se importam com as aparências, não a incentivando e sempre cobrando melhores resultados dela.
Tudo isso culmina para o final. O último capítulo apresenta um debate intenso entre ela e Veretítsin. Ali, as perspectivas são muito claras. Ele, homem, tem outra visão da vida, acomodado pelos fracassos, invocando um discurso tradicionalista. Ela, mulher, clama pela liberdade, pelo conhecimento, pela independência. Esse livro nos dá um panorama de como foi a vida da mulher na Rússia no século XIX e como poderia ser, se direitos equivalentes fossem dados para mulheres e homens.
Não pode ser considerado um livro para morrer de amores, mas, por sua importância histórica e social, vale à pena ser lido.