Eduardo II

Eduardo II Christopher Marlowe




Resenhas - Eduardo II


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Emme, o Fernando 27/12/2017

Um homem moderno contra homens medievais !!!
A primeira coisa que salta aos olhos ao ler/assistir esta peça é o quão dinâmica ela é para uma peça histórica. Christopher Marlowe é absolutamente habilidoso ao escolher os factos certos e dispô-los da maneira exata para que a peça tenha ritmo. Ao evitar cenas muito longas, ele dá agilidade à trama e não deixa que o interesse do leitor/espectador caia.

A trama narra a história de Eduardo II, de como o Rei medieval inglês foi traído, forçado à abdicar e finalmente morto.

O desenrolar dos factos é relativamente simples de acompanhar, mas as motivações por trás de cada acto e o próprios personagens são tão complexos que causam assombro. Quando você acha que as coisas são simples e esperadas, elas se tornam, a olhos atentos, assustadoramente complexas e nada óbvias.

Exceto pela "virada" de Mortimer e Isabela (que pode ser entendida como uma revelação de seus reais interesses), os personagens principais são todos complexos, dinâmicos, contraditórios demais.

A peça começa por Gaveston, um "amigo íntimo" do rei Eduardo II recebendo uma carta solicitando que ele volte do exílio na França imposto por Eduardo I, pai do segundo de nome, que havia morrido recentemente.

A primeira polêmica que se instaura (e será um dos motivos para que tanto a peça quanto o autor sejam esquecidos ou deixados de lado pela crítica puritana inglesa) é a natureza da relação entre Eduardo II e Gaveston. Há uma reciprocidade evidente entre os dois, uma amizade e companheirismo colocados como sinceros por Marlowe de ambas as partes. O autor deixa explícita a natureza sexual de tal convivência, revelando não apenas um romance homoerótico entre os dois personagens, mas também uma relação homoafetiva e uma resistência de Eduardo II em esconder que prefere a companhia de Gaveston a companhia de Isabela, sua esposa e rainha da Inglaterra, e dos nobres da corte.

Eduardo II dá a Gaveston, seu "preferido", títulos de nobreza absolutamente incabíveis para alguém não nobre como Gaveston, o que gera a revolta dos nobres, principalmente Mortimer, Lancaster, Warwick. Mas Eduardo II faz mais que isso, ele concede seu selo real a Gaveston e governa de igual para igual com ele, rejeitando cada vez mais a presença da rainha e dos nobres da corte.

Uma leitura ou assistência mais desatenta da peça poderia levar o leitor/espectador a achar que Eduardo II é traído por ser bissexual, por ser perdulário e mau administrador. Talvez pela minha experiência com Ricardo II, eu já fui à peça com a expectativa de encontrar um rei fraco, rodeado de bajuladores parasitas, que só quer gastar o dinheiro do reino, é displicente em relação à guerra e à proteção do reino.

Mas conforme a peça de Marlowe avança, você logo percebe que nada é simples: os preferidos do rei são sim pessoas sem origem nobre que tentam se beneficiar através da relação com o rei, mas Marlowe não os coloca como perdulários arrivistas. Pelo contrário, os preferidos do rei não fazem absolutamente nada diferente do que os nobres fazem.

Se Gaveston, no começo da peça, desdenha de gente pobre, é arrivista, vaidoso e hedonista, ele não faz nada diferente do que os nobres como Mortimer fazem com ele.

Aliás, os motivos por que Mortimer se recente de Eduardo II e suas companhias são imprecisos no começo da peça e são revelados à medida que ele ganha poder: Mortimer é tão arrivista quanto Gaveston, não possui qualquer escrúpulo em utilizar sua influência junto à rainha para conquistar poder e status.

Mortimer tenta durante toda a peça conquistar um lugar que, apesar de ele ser nobre e ter sangue real, não é o seu lugar por direito. Mortimer tenta ocupar o lugar do próprio rei, mas critica Gaveston e os Spencers por quererem ser mais do que seus lugares de nascimento lhes permitia.

A mesma situação vive Isabela, que no início ainda está apaixonada por Eduardo II, mas com a indiferença do rei, passa cada vez mais a se envolver com Mortimer e querer exercer através dele um papel que no mundo medieval não é o dela: ter tanto poder de mando quanto Eduardo II.

Nesta peça não há pessoas boas ou más (por mais perversas que algumas delas sejam). Enquanto Isabela é abertamente traída e menosprezada por Eduardo II seu marido, é ela quem manipula Mortimer para que ele efetivamente mate o rei. Enquanto Eduardo II é extremamente fiel a seu amor por Gaveston, é ele quem manipula Isabela para conseguir o retorno do seu amante junto aos nobres. Enquanto Mortimer xinga de escravos os aduladores de Eduardo II, ele é mais arrivista e sedento de poder do que todos eles juntos. Enquanto Gaveston é arrivista e se utiliza de sua influência junto ao rei para desdenhar tanto dos pobres quanto dos nobres, ele é sinceramente fiel a apaixonado pelo rei. Enquanto os Spencers são bajuladores do rei, são eles que tomam iniciativa de pagar aos nobres de França para que Isabela e Mortimer não consigam ajuda militar para atacar Eduardo II e destroná-lo.

Nesta peça não existem personagens inocentes, todos de certa forma se utilizam uns dos outros para conseguirem o que realmente desejam, não importa se para isso tenham de usar o poder político nem o poder do sexo. Mas isso não impede que nutram uma afeição verdadeira, como Isabela por seu filho, Eduardo III, e por Mortimer, Eduardo II e Gaveston um pelo outro....

Nada é simples.... e isso leva o leitor/espectador e duvidar e questionar outras coisas na peça e além dela....

Ao ler/assistir Ricardo II de Shakespeare, a natureza homoerótica das relações de Ricardo com seus favoritos é sugerida de modo muito sutil, os bajuladores são apresentados como arrivistas. Ricardo II é um rei fraco, perdulário, alienado, inepto ao exercício do poder real. É destronado por Bolingbroke (Henrique IV), másculo, agressivo, dado à guerra e às conquistas e por isso um governante forte, apto ao exercício do poder. O leitor se convence em Ricardo II de que um governante fraco "merece" ser destituído em prol de um governante forte e apto.

Mas Marlowe vai levar o leitor em Eduardo II a questionar inclusive essa "verdade". Afinal o que torna Eduardo II inepto ao exercício do poder?

Ele é perdulário? Bom, a figura histórica de Eduardo II mostra que ele foi menos dado à guerra que o pai, Eduardo I (facto afirmado na peça). Enquanto Eduardo I gastou mundos e fundos com as guerras de conquista (o que levou inclusive Eduardo II a pedir ajuda financeira ao Papa), Eduardo II parecia mais preocupado com o desenvolvimento cultural dos ingleses, construindo grandes universidades e promovendo as artes.

Quer dizer então que "gastar" em arte e cultura (gastos desnecessários para a mente medieval - e por que não dizer para a mente conservadora de hoje em dia também) é ser perdulário, mas quase levar o reino à falência em guerras absolutamente desnecessárias, não ?????

A reflexão que Marlowe acaba trazendo ao espectador/leitor é sobre a real natureza do conflito que se estabelece entre Eduardo II e os nobres de seu tempo.

Na cabeça dos nobres, a ordem medieval do status deve ser mantida acima de qualquer desejo individual, as "relações de classe" nobreza X campônios/burguesia ditam de forma absoluta quem pode exercer o poder ou não, quem detém privilégios em uma sociedade patriarcal em que a guerra é mais importante do que atividades passivas (femininas) como as artes e o desenvolvimento intelectual.

Para os nobres, Eduardo II é inepto a exercer o poder porque não sabe respeitar as "relações de classe" (termo anacrônico meu), se mistura e mantém estreito relacionamento com as pessoas sem olhar seu lugar de nascimento, sem rótulos. Para os nobres, Eduardo II é inepto porque coloca à frente de suas obrigações seus sentimentos e seus desejos.

A relação entre Eduardo II e Gaveston não é apenas carnal (homoerótica), mas afetiva (homoafetiva). Eduardo II é visto como inepto a exercer legitimamente uma posição de poder porque quer assumir publicamente uma relação homoafetiva em um momento histórico em que apenas relações homoeróticas muito discretas são toleradas e somente entre os mais ricos e poderosos.

Eduardo II é um homem moderno, enquanto os nobres são homens medievais. Eduardo II é individualista, generoso, afetuoso, de índole conciliadora. Os nobres ao seu redor são homens medievais que colocam o dever e a ordem estabelecida acima de qualquer vontade pessoal (homens racionais).

Depois desta peça de Marlowe, o leitor se vê obrigado a repensar Ricardo II de Shakespeare e o próprio Shakespeare.

Em Ricardo II, não resta dúvida de que um governante possivelmente bissexual, não belicoso, "perdulário", não merece governar. É justificável sua deposição em favor de um governante patriarcal, belicoso, racional, legítimo representante do poder masculino.

Já em Marlowe todas essas certezas são jogadas pelo ralo.

Não resta dúvida de que Shakespeare é mais cuidadoso ao expor seus temas, mais subtil, mais conservador em suas reflexões e, claro, mais politicamente correcto.

Já Marlowe é bem mais subversivo.

Talvez esteja aí o motivo pelo qual tanto Marlowe quanto sua obra tenham sido legados com tanta força ao esquecimento. Não só por ter morrido muito cedo (29 anos) e ter tido tempo de produzir apenas 6 peças completas, mas porque Shakespeare seja muito mais fácil de digerir.

É de se sonhar acordado o que uma pessoa como Christopher Marlowe teria produzido se tivesse vivido mais tempo.

Em artes é de conhecimento amplo o facto de que não existe uma definição absoluta e definitiva de "arte", mas é possível reconhecer objetos artísticos.

Ao ler Eduardo II de Christopher Marlowe o leitor/espectador é obrigado a reconhecer que está diante de uma obra de arte.
Salomão N. 27/12/2017minha estante
Poxa, fiquei com vontade de ler. Pena que esses livros de editoras de universidade não chegam aqui, só em feiras de livros anuais. O único que consegui adquirir foi a Divina Comédia do Ateliê Editorial.


Emme, o Fernando 28/12/2017minha estante
As editoras universitárias são tão pouco preocupadas com distribuição, que esse título sequer está cadastrado no próprio site da editora (?)


Emme, o Fernando 28/12/2017minha estante
Tu compraste a Divina Comédia da Ateliê? Não é aquele livro GIGANTE com ilustração do... (esqueci, mas é famoso)...


Salomão N. 28/12/2017minha estante
Sim, do Botticelli.
E a tradução é fluentíssima.




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