Eduardo 22/12/2021
Desarmar a bomba dos linchamentos
Há alguns anos estou de olho nesse livro e resolvi aproveitar o início do recesso para encarar a sua leitura. A sensação que tive ao ler é que eu gostaria de ter lido esse livro até mesmo antes da sua publicação, no ano de 2017, pois acredito que ele joga luz sobre aspectos importantes das transformações pelas quais o Brasil passou na última década.
Nesse longo ensaio, Francisco Bosco traça um panorama das lutas identitárias no Brasil e propõe simultaneamente a defesa desta pauta, mas também uma (auto)crítica. Partindo do contexto de inúmeros marcos destas lutas, como Dia Internacional da Mulher, Marcha das Vadias, #chegadefiufiu, #meuprimeiroassedio, Marcha das Mulheres Negras, entre outros, percebe-se uma transformação em certos movimentos sociais, que passam a investir principalmente contra os costumes sociais que mantém e revelam estruturas arcaicas da sociedade brasileira, a saber: o racismo, o machismo e a lgbtfobia. Enfrentam-se as formas de violência simbólica, mecanismos mais ou menos sutis de dominação em embates entorno da noção de reconhecimento.
Diversos conflitos surgem principalmente nas redes sociais, e o autor destaca três fatores recentes para o surgimento desse novo momento: uma nova forma de atuação política, cujo marco é junho de 2013, o colapso do lulismo e a emergência das redes sociais como uma espécie de novo espaço público. Esses três fatores convergem para a transformação da autoimagem dos brasileiros como povo caracterizado pela mistura, miscigenação e cordialidade, ideia predominante ao longo do século XX, para uma nova imagem no início do século XXI, de um povo compreendido pelas identidades, separação e confronto. Um marco cultural importante dessa nova imagem de Brasil seriam as músicas dos Racionais MC's, que dividem a sociedade entre "manos" e "playboys", simbolicamente separados pelas pontes da cidade de São Paulo. Já na política, o marco são as ações afirmativas iniciadas no governo FHC e desenvolvidas ainda mais no governo Lula. Sobre a crítica dos intérpretes do Brasil, o autor destaca que o próprio FHC é formado na USP, um lugar importante na construção da crítica das ideias dos intérpretes do Brasil como país caracterizado pela miscigenação.
Ainda sobre os três fatores, vale uma ressalva à noção de um colapso do lulismo. Se em 2017 o lulismo parecia ferido de morte, com o recém golpe parlamentar-midiático que tirou o PT à força do poder, em um final de 2021 Lula ressurge entre os favoritos para as eleições do ano que vem.
Uma análise talvez um tanto mecânica, mas bastante interessante que Bosco faz para pensar o esgotamento da visão do Brasil miscigenado, misturado ou cordial é a de que na cultura foi possível realizar grandes obras fundadas na potência da mistura: o Modernismo, a bossa nova, o Tropicalismo, o samba etc. No entanto, socialmente esse intuito da democracia racial nunca pôde ser realizado, pois ao longo de todo o século XX e até hoje continuamos a ser um país marcado por profundas desigualdades, conservador e autoritário, com amplos setores vivendo na miséria e, no jogo internacional, submetidos a interesses de potências estrangeiras.
Em meio a essas transformações, Bosco irá dedicar sua atenção para o surgimento de linchamentos digitais e public shaming - hoje chamaríamos de "cancelamentos". Sobre este fenômeno ele nota alguns elementos interessantes: de forma majoritária, eles voltam-se contra os pares ideológicos: são indivíduos de tendências de esquerda que são cancelados pela própria esquerda. Nesse sentido, Bolsonaro é um incancelável.
Estas estratégias de cancelamento tendem a voltar-se não para a transformação de relações sociais e institucionais de poder, mas contra indivíduos específicos, que acabam servindo como bode expiatório. Diante das denúncias de violência, muitas delas feitas fora dos espaços institucionais da lei, por um princípio de empatia incentiva-se como princípio o não questionamento dos denunciantes, tratados como vítimas. Aqui a diferença entre os termos é sutil, mas determinante: antes de qualquer julgamento ou de direito de defesa um acusador torna-se vítima e um acusado torna-se opressor. É justamente a empatia, que motiva esse princípio, que acaba impedindo de enxergar possíveis inconsistências em um relato. Em outras palavras, a empatia se aproxima do preconceito na medida em que ambos funcionam distorcendo julgamentos morais.
Concorre para esse fenômeno uma divisão no interior do feminismo entre duas imagens da feminilidade. Uma delas decorre do ideário das manifestações de maio de 1968, da contracultura e do debate sobre a pílula anticoncepcional: a imagem de uma mulher dotada da capacidade de decidir sobre o seu próprio desejo e sobre as consequências dele. O outro ideário é o das radfems estadunidenses da década de 1980, que compreendem que vivemos em regimes patriarcais cuja relação de dominação da mulher pelo homem é tão intensa que toda a experiência de heterossexualidade constitui um abuso e que a mulher não possui autonomia nesta sociedade. Assim, não tendo autonomia, a ideia de consentimento como o que permitira práticas sexuais legítimas fica invalidada. Nesse sentido, produzem-se uma série de denúncias de "manipulação psicológica", de "comportamentos abusivos" e de "assédio moral". Diante dessas violências a mulher não teria autonomia para livrar-se delas autonomamente e, portanto, recorreria à denúncia pública.
Um aspecto interessante é perceber no livro diferenças entre um certo consenso sobre a internet em 2017 e hoje em 2021. Em um tempo de transformações rapidíssimas, o texto de Bosco, de 2017, descreve a internet como um espaço principalmente marcado pela fragmentação e descentralização. Acredito que hoje a internet e as redes sociais nos pareçam menos descentradas e democráticas, após fenômenos como o Brexit, eleições manipuladas por disparos em massa e "robôs" com alta capacidade de criar desinformação e falsos consensos, ou até mesmo de uma compreensão melhor do papel dos algoritmos no controle da informação.
Outro modo de encarar as tensões dentro e fora dos movimentos identitários é entender, a partir da teoria social, as estratégias de bonding (criar laços internos dentro de um grupo) e de bridging (estabelecer pontes entre grupos distintos). O autor afirma que as estratégias de bonding são importantes no sentido de sobrevivência desses grupos diante de uma situação violenta, no entanto, se usada demasiadamente essa mesma estratégia acaba por isolar os grupos, impossibilitando-os de saírem do lugar de marginalização. Sendo assim, sugere uma outra equação entre ambas as estratégias.
Muitas das discussões mencionadas acima são feitas relacionando-se com estudos de caso recentes à época, como a crítica a marchinhas tradicionais brasileiras por seus conteúdos machistas, racistas ou homofóbicos; o caso em que uma militante do movimento negro questiona uma jovem branca por usar um turbante (descobre-se depois que ela tinha a cabeça raspada por causa de um tratamento de câncer); um clipe de Mallu Magalhães com dançarinos negros, entre outros.
Nestes dois últimos estudos de caso mencionados acredito que há dois dos pontos baixos do livro. O primeiro diz respeito à discussão sobre apropriação cultural, conceito o qual o autor defende, ainda que afirme que, na modernidade, não existam formações culturais "puras". O que particularmente desgosto nos usos que comumente se fazem desse conceito é a falta de clareza na relação entre a apropriação e a perda de valor de certa "autenticidade" da expressão cultural que foi apropriada. Esta relação está claramente no termo "pasteurização", que está em desuso. A contribuição que o conceito de crítica cultural tem, a meu ver, é de marcar o elemento racial dos processos de pasteurização. A ideia de posse contida no sentido de apropriação sugere que um objeto cultural pode ser passado de um dono a outro sem que isso alterasse suas características intrínsecas, como uma mera mercadoria. Um caminho menos obscuro, a meu ver, seria justamente dar destaque a essas alterações que uma obra cultural sofre nesses processos de transformação, o que só pode ser revelado a partir da análise desses objetos. Em outras palavras, é tratar a seguinte pergunta como central: por que o "samba branco" de João Gilberto possui mais qualidade do que o também "samba branco" de Mallu Magalhães?
No capítulo sobre o estudo de caso da polêmica sobre o clipe "Você Não Presta" este tipo de problema aparece de modo significativo. Ao analisar alguns elementos do clipe, o autor não relaciona o clipe com a tradição com a qual ele dialoga. Afinal de contas, este não foi o primeiro clipe (entre artistas brancos e negros, brasileiros ou estrangeiros) a se utilizar de corpos seminus dançando besuntados em óleo, a tensionar impulsos de liberdade com a dança com sugestões de contenção através de imagens de sujeitos atrás de grades. A análise acaba revelando-se corrida e superficial, sem dar conta de dar a entender o porquê de este clipe ter gerado tanta discussão e mal-estar. Além disso, pontos chave do clipe como a tensão entre modernidade e atraso (com os cenários alternando-se entre uma usina de energia solar e um cômodo de tijolos expostos), típicos da discussão sobre o nacional-desenvolvimentismo, contemporâneo do ritmo do samba-jazz que embala a letra de Magalhães, não são nem ao menos mencionados na análise. É também preciso debruçar-se sobre a própria letra da canção que tematiza um processo de exclusão simbólica: "Eu convido todo mundo para a minha festa / Só não convido você porque você não presta". A ironia ao aproximarmos a letra e a polêmica é gritante, porém a análise do autor passa ao largo destes pontos instigantes.
Ainda assim, predomina no livro a importante tarefa de complexificar as pautas identitárias, além da interessante proposta de relacionar o surgimento das pautas identitárias com a crítica desse novo espaço público que são as redes sociais.
Se em alguns momentos a análise parece ir e voltar, um tanto em cima do muro, trazendo prós e contras dos elementos que ele analisa, o autor toma partido quanto a quais medidas ele entende como mais efetivas e justas para avançar na conquista de direitos. Em um trecho que vale a pena ser reproduzido aqui, ele de defende que ao invés de dar visibilidade imediata (antes de qualquer conclusão pela justiça) nos casos de denúncia, incriminando sujeitos que terão sua presunção de inocência violada, talvez fosse melhor "criar 'observatórios de processos' que lutem por instituições públicas que respeitem a palavra da mulher (como as Delegacias da Mulher), que lutem por representatividade radical nas demais instituições envolvidas nesses processos (Ministério Público e juízes), que acompanhem eventuais repercussões do caso na imprensa (exigindo uma conduta equilibrada, ouvindo ambos os lados, sem favorecimento), que denunciem quaisquer distorções identificadas no decorrer do processo – que procurem garantir, em suma, a abolição do desequilíbrio institucional que está na origem da estratégia de assumir potenciais injustiças contra indivíduos".
O autor conclui de maneira peremptória: "as estruturas machistas institucionais e sociais fazem com que determinados feminismos desenvolvam premissas e métodos para os quais, em nome do combate à estrutura, indivíduos particulares devem ser combatidos, sendo submetidos ao crivo de uma perspectiva simetricamente oposta à do machismo estrutural. Nesse processo, todo indivíduo vem sendo reduzido à sua estrutura de origem: em princípio, ele a reproduz, e de nada valem, nas situações concretas, as evidências atenuantes, relativizantes, complexificadoras ou mesmo absolvedoras – deve-lhes ser imposto o mesmo tratamento que a estrutura machista reserva às mulheres". E questiona: isso é justo? Sua resposta, claro, é um não: "as ações, mesmo as que visam objetivos finais justos, que se autorizam a instrumentalizar indivíduos para atingir esses objetivos, essas ações são típicas de sistemas totalitários." A contrapartida dessa crítica já está contida no enunciado anterior: o reconhecimento, por parte da sociedade, da justiça das reivindicações desses movimentos quando tratam-se de lutas por igualdade.