Amélia Galvão 25/05/2020São dois textos escritos na década de 1860, a mesma da publicação de "Crime e castigo" (1866). "O Crocodilo" (1865) é uma novela inacabada permeada de aspectos fantásticos e cômicos e é uma sátira genial sobre o capitalismo. "Notas de inverno sobre impressões de verão" (1863) é um relato de viagem que transborda ironias e críticas à alta sociedade russa e à burguesia europeia, principalmente a francesa.
Eu amei a novela "O crocodilo"! Seu estilo cômico e fantástico foi inspirado nos textos de Nikolai Gógol e Dostoiévski disse, inclusive, que queria imitar a novela "O nariz" e fazer algo apenas para rir. Mas, estamos falando de Dostô, então é lógico que esse texto não provoca apenas risadas, mas várias reflexões também.
A leitura do crocodilo pode ser feita em várias camadas. Pode ser apenas um texto divertido ou podemos mergulhar mais a fundo e ver as metáforas e os símbolos empregados pelo autor. Ambas as leituras são prazerosas, mas confesso achar muito mais interessante e divertida essa última. Para a conseguirmos fazer é necessário um pouco de conhecimento sobre a Rússia nesse período e também sobre o que Dostoiévski pensava.
Aviso que a novela não foi finalizada e que isso não diminui nem um pouco a sua qualidade, apenas nos deixa com o sentimento de quero mais. A história é sobre Ivan Matviéitch, um pequeno funcionário público russo, o qual, antes da sua viagem para a Europa, decide visitar uma exposição de animais estrangeiros onde há um crocodilo. O problema se inicia quando esse réptil o engole.
Sem a pretensão de fazer uma análise detalhada, quero mencionar alguns aspectos. Alerto que nada está no texto por acaso, as descrições, as palavras, tudo é escolhido a dedo por Dostoiévski, como, por exemplo, o fato de Ivan pretender viajar à Europa, da exposição ser de animais estrangeiros e de ser propriedade de um alemão. Ao meu ver o crocodilo é uma representação do capitalismo europeu engolindo a Rússia. Inclusive, uma personagem do livro, colega de Ivan, afirma que ele "só tratava de 'progresso' e de umas certas ideias, e eis aonde conduziu o progresso", ou seja, Ivan era um ferrenho defensor das ideias ocidentalistas, acreditando que a Europa ocidental seria o modelo de progresso a ser seguido, mas ele acaba engolido por aquilo que ele defendia.
Na história é explicado que a palavra crocodilo vem da raiz francesa croquer, a qual significa comer ou devorar e é descrita como característica fundamental do réptil o engolir gente, que as suas entranhas deveriam incessantemente engolir e se encher de tudo o que esteja à mão. Para mim, Dostoiévski está aqui enfatizando a voracidade, a selvageria do modelo burguês europeu, o qual engole tudo que está ao seu alcance.
Também há muitas ironias e críticas à burocracia russa, bem como àqueles que pensam ser tudo melhor na Europa ocidental. Algumas personagens apresentam ideias desumanas e colocam o "princípio econômico" acima de tudo, pregando a exploração e o sacrifício do homem russo pelos estrangeiros. Inclusive, uma chega ao cúmulo de caracterizar Ivan como alguém vil por ter "se deixado" engolir pelo crocodilo e lhe causar sofrimento, ou seja, há uma clara inversão de papéis.
É uma novela, infelizmente, ainda bastante atual, a qual critica não só o pensamento ocidentalista e a burguesia europeia, mas principalmente a desumanidade das pessoas, o descaso delas em relação ao próximo e a não valorização do indivíduo, o qual é visto apenas como uma ferramenta descartável.
Já "Notas de Inverno sobre impressões de verão" é um texto muito próximo a um ensaio e em que a falta de algum conhecimento sobre a Rússia e sobre Dostô pode dificultar a percepção das ironias e diminuir a graça e a compreensão do texto. Trata-se de um relato de viagem, no qual ele comenta suas percepções da França, Inglaterra e Alemanha e as relaciona com aspectos da sociedade russa.
Eu também amei essa leitura e sua ironia e acidez me lembraram Machado, já as descrições da sujeira e miséria das cidades me lembraram o Dickens. Nesse relato, Dostoiévski se utiliza da viagem para criticar principalmente os ocidentalistas russos e a burguesia francesa e inglesa. Os ocidentalistas viam a Europa ocidental como o exemplo de progresso a ser seguido e desejavam importar vários comportamentos, teorias e modelos, fossem no ramo das artes, da ciência, filosofia, economia ou outras áreas.
Dostoiésvki faz várias críticas a veneração cega que muitos russos tinham pelos europeus, principalmente pelos franceses e da necessidade de andar com rédeas alheias. Ele critica a valorização dos ideais burgueses, os quais prezavam, entre outros, por um comportamento de aparências, pela exploração dos menos favorecidos e pela submissão da mulher. Ele compara Petersburgo com Paris e Londres, justamente por sua criação se basear nos moldes das metrópoles europeias. Era para ela representar a modernização e o progresso da Rússia. No entanto, o que se enxerga em todas elas são miséria, sujeira e sofrimento. São pessoas passando fome, prostituindo-se e sendo exploradas enquanto a única coisa que importa é o acúmulo de capitais e bens.
Ele critica também a falsa moralidade, o falso pudor e o falso cristão. Critica os nobres russos que se dizem tão avançados por se vestirem como burgueses e seguirem esses pensamentos, mas que continuam a tratar com crueldade seus criados, utilizar-se das mesmas maneiras patriarcais com suas famílias e tratar com tirania suas mulheres. Que espécie de progresso é esse? Dostoiévski nos mostra que a alta sociedade russa acusava seu povo de barbárie, ridicularizava a cultura local e adorava cegamente a civilização europeia, no entanto o que ela fez ao tentar os imitar foi apenas trocar alguns preconceitos e baixezas por outros ainda maiores.
Há reflexões sobre o socialismo, o comunismo, a burguesia, a autocracia, o cristianismo, o papel da mulher e natureza do ser humano. Ele acreditava que o problema da sociedade estaria ligado à natureza do homem, à estruturação da sociedade na razão ao invés do sentimento. Para ele o homem ocidental teria uma natureza individualista, a qual o impede de uma fraternidade autêntica. Seria preciso que "se tenda instintivamente à fraternidade, à comunhão, à concórdia [...]", em síntese: é preciso amar.
Enfim, é uma leitura densa, divertida, reflexiva e essencial para aqueles que desejam conhecer mais o autor. Recomendo muito, mas não como uma porta de entrada. Acredito que seja melhor começar com o "Crime e Castigo" por ser uma obra mais palatável da sua fase madura.