Beatriz3345 29/02/2024
Toda vez que eu penso em você uma dor escorre pela ladeira do meu rosto.
juro por todos os deuses existentes ou inventados que não houve uma dor maior na minha vida do que me desconectar daquilo que construímos.
a explosão suscitou em mim desejos por desaparecer da rua, pintar as paredes da casa de azul pra roxo, trocar os pneus do carro, carecer de chorar escondida no canto da sala com um cigarro nas mãos pra ter a sensação próxima de segurar algo maleável ? por tanto tempo eu fui o objeto segurado nos seus punhos cerrados e desastrosos.
queria te mandar um e-mail. mas aí eu lembro que sou boa demais e que preciso ser um pouco má ou aborrecida comigo mesma. que preciso estar honestamente afetada por aquilo que você foi na minha vida e por todas as vezes que você deitou em mim uma espécie de culpa inteligível.
confesso que queria ligar, ouvir sua voz rouca e macia, muito parecida com a de outros mil caras por aí, mas que, se ouvida com calma e apreço, torna-se palatável. contar coisas como por exemplo das bocas que toquei depois de você, dos corpos que me quiseram com tanta força que o rio Jordão saltaria da bíblia sagrada, das pessoas que me quiseram tão próxima a elas e às quais resisti.
dei a mim mesma mais espaço pra dormir na cama, volto pra casa antes da meia-noite, troquei meus verbos favoritos, tenho três tatuagens novas, adotei mais duas gatas, fui morar no sri lanka, me reconciliei com jesus cristo, aprendi a cozinhar.
contar. coisas. tantas.
é dessa parte que mais sinto falta em você. ou no mundo. nós fomos criados pra tocar uns aos outros e quando terminamos, tudo, eu quis pular em suas costas e pedir perdão pelo que havia causado.
somos ruínas que habitam o mesmo território alagado. estamos abrigados no mesmo prédio da desilusão, tentando descer as escadas rapidamente pra não sermos queimados por tudo aquilo que produzimos e que começa a explodir.
sim.
eu e você estávamos correndo, desesperados, pela ideia de encontrar alguém que pudesse suprir ? meu deus do céu ? tantas coisas, de que nem precisávamos, ou precisamos.
éramos duas casas
construídas no mesmo metro quadrado com propostas diferentes.
você, oco. eu, evasão.
mas acabou.
as paredes roxas de casa secaram
e o problema das coisas que terminam é a vontade de dizer sobre aquilo que ainda fere na passagem do tempo quando, separados, só nos resta a agonia de não saber o que acontece em tempo real, o que se tem comido, como se tem passado, se há pranto.
quando as coisas terminam, a luz da cozinha é apagada porque não há jantar, as gatas não miam por tristeza ou insolência, o mundo é menos mundo porque deixa doer. a dor cicatriza e anestesia a pele e temos vontades absurdas de reatar, de colocar a mão no destino e segurá-lo entre nós e a pessoa amada.
por muitos dias, quis arrancar a decoração das ruas da cidade e tudo que pudesse, num lapso ou falha da minha autorresistência, lembrar você ou os meses em que olhamos juntos pro mesmo caminho e queríamos ficar.
por vezes, desvio das rotas que fazíamos, desperdiço tempo enchendo a mente com coisas rasas pra apagar qualquer resquício seu, enterro movimentos e ações que me lembrariam você.
os ovos nem tão fritos no café da manhã. a carne passada demais no almoço.
os dramas franceses e amadores que não entrariam em catálogos como os da netflix.
seu cheiro de borracha com mel.
mas ainda lembro de pequenas coisas e tudo que isso faz é doer.
coloco meus dedos sobre o teclado do computador, ainda afetada pela ideia de você, rezo pra deus ou algo próximo a isso, escrevo:
?esta será, de uma vez por todas, a última coisa pensada, escrita e direcionada a você. é quase meia-noite, não preparei meu jantar, as gatas não miaram, as paredes continuam com cheiro de tinta roxa, você não veio. e você não vir não é o maior dos problemas, mas a ideia acostumada de que, por você ter vindo todos os dias durante um ano, você viria hoje também. erramos por nos acostumar ao conforto da estadia e, mais do que um amor romântico e naturalizado, nutro por nós uma espécie de apego. é isso. estou escrevendo desta última vez pra me aliviar da afetação que você causou; porque houve mágoa e perdões que não foram aceitos, reiterados, ouvidos. porque as velas que você comprou pro natal não serão usadas em ocasião alguma. porque os tapetes e a luminária do quarto serão depositados num saco preto displicente. porque o entregarei à minha vizinha.
você me fez entregar nós a pessoas que não sabiam da sacralidade do amor.
depois do fim, passei a me agarrar a qualquer resquício daquilo que poderia me distrair da memória conflituosa que criei ? salas de cinema lotadas, faxinas concomitantes ao seu cheiro indo embora dos cômodos, exílio do mundo.
mas, embora todo o processo de reconstrução tenha sido doloroso e muitas vezes atormentador, escrever estas palavras mastigadas me reconforta debaixo disso que chamam de trauma. pois o trauma seria bem maior se eu tivesse virado as costas e sentado na calçada pra chorar. eu chorei,
sim, você e nós, sobretudo em pé, como tinha de ser. em pé, soterrada pela agonia da despedida, mas soerguida pela promessa do meu amor a mim mesma.
o meu amor por mim me salvou.
obrigada por me mostrar isso ? da maneira mais honesta e desagradável possível.?
E CHOREI?