Emme, o Fernando 26/01/2018Um livro avassalador!***********************************************
Opinião sem spoilers
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Por alguns dias eu fui Elio...
Por alguns dias eu fui um adolescente de 17 anos em algum lugar da Riviera italiana...
Por alguns dias eu fui apaixonado por um homem chamado Oliver...
Por alguns dias nós nos amamos e ele me mostrou toda alegria e toda a dor que é possível sentir....
Ele é mais eu do que eu mesmo !!!
Essa é a mágica desse livro: ele não te conta uma história, ele faz você vivê-la.
O modo como a história é construída produz esse efeito de identificação entre protagonista e leitor.... (não importa seu sexo, sua orientação...)
O leitor é sugado (literalmente feito refém) para o ponto de vista de um adolescente de 17 anos chamado Elio, que ao passar as férias de verão na casa dos pais na Riviera Italiana, conhece um jovem filósofo chamado Oliver, de 24 anos, que chega para se hospedar lá.
A primeira parte é uma ode à literatura da paixão. É como se o autor tivesse anatomizado o cérebro de uma pessoa apaixonada e tivesse colocado no texto cada mínimo detalhe de seus pensamentos, aflições, inseguranças, medos, tormentos, pequenas alegrias e loucuras insanas.
O leitor se identifica porque qualquer um que já tenha se apaixonado na adolescência por alguém que parecia absolutamente inacessível vai compreender perfeitamente a verdade estarrecedora de cada minúcia, a aflição em querer ser visto e notado, mas não fazer a menor ideia de como...
O leitor é cativado pelo único ponto de vista do livro, o de Elio. Você quer viver o que é narrado! É quase uma angústia. Você começa a sentir o que apenas os melhores autores conseguem fazer: você começa a sentir o que o protagonista sente.
É literatura da mais alta qualidade, tecida com um cuidado exemplar com as escolha de cada palavra, com a construção de cada período, cada parágrafo.
Há algumas soluções maravilhosas para a narrativa. No momento em que Elio conversa com Oliver para lhe contar tudo que sente, eu fiquei literalmente me mordendo para saber como ele conduziria o diálogo e ficou perfeito, nenhuma palavra desnecessária, nenhuma fora do lugar.
A partir da página cem, começa a ficar cada vez mais claro para o leitor que o narrador em primeira pessoa não é nada confiável. Não por ser desonesto, mas simplesmente por estar perdidamente apaixonado. O leitor vai aos poucos percebendo que as conclusões a que ele chega não são nada confiáveis; a percepção do narrador está completamente distorcida pelos sentimentos contraditórios do desejo. Portanto, qualquer conclusão que o leitor possa tirar do comportamento de Oliver pode ser muito equivocada, mas aí já é tarde, pois o leitor já está tão envolvido que se deixa levar.
Esse é o grande trabalho que Elio e nós leitores temos durante a leitura: descobrir quem o Elio é, o que ele deseja e o que Oliver deseja. Como o leitor só tem a perspectiva do Elio, não é uma tarefa fácil entender a razões de tudo que acontece.
Algumas coisas de que eu não gostei:
- O envolvimento do Elio com uma amiga dele: Elio passa da categoria de amante apaixonado para categoria de adolescente mimado e caprichoso (ele vai acabar magoando-a). Mas é necessário entender que isso faz parte da personalidade dele: impulsivo, nunca nega o desejo, pelo contrário, segue o desejo sem qualquer reflexão (ele está se descobrindo).
- A ideia quase escatológica de identidade entre os corpos: o autor segue a ideia de uma intimidade máxima entre os dois e cria uma cena escatológica (a cena do "Deixa eu ver" em Roma). Eu pessoalmente prefiro a sabedoria dos antigos: sempre deve haver uma certa distancia, me identificar com o outro em um grau máximo não significa me fundir ao outro em um nível escatológico.
- Na ânsia de criar personagens não estereotipados, o autor cria personagens que são homens, se comportam como homens héteros, se interessam por mulheres e quase que por um acaso do destino vivem um amor.
Mas tudo é perdoável em relação a um livro tão magnífico, tão bem escrito. Uma narrativa poderosa que te envolve em um grau máximo.
A partir do momento em que os laços se estreitam e os dois se envolvem sexualmente começa um show de fantasia erótica. Seria muito fácil para o autor cair em um monte de clichês, em fantasias batidas, mas de novo, o autor não decepciona. É um jogo erótico muito bem construído e na verdade, até quase o final o livro é muito sensual: a imagem do verão na Itália, dos corpos com bastante pele a mostra, o suco de damasco, os pêssegos maduros, o sexo à tarde e na praia....
Uma das características mais interessantes do livro é essa constante avaliação que Elio faz sobre quem ele é, o que ele realmente deseja e o que Oliver deseja. Por isso o tema central do livro talvez seja realmente o reconhecimento da própria identidade.
Filme: a cena escatológica não é mostrada no filme e a grande cena do pêssego é cortada ao meio tendo uma solução totalmente diferente. A cena do pêssego tem uma carga emocional enorme no livro, no filme, censurada, ela não tem sentido.
O filme todo é muito bonito, mas muito menos POTENTE que o livro, pois parece mais preocupado em não mostrar demais ou não mostrar nada que choque muito as pessoas. O filme é menos melancólico, pois termina antes da época em que o livro termina. Além disso, as paisagens luxuriantes do norte da Itália (?) aparecem com um fotografia, na minha opinião, meio apagada. Esperava algo mais exuberante do filme!
Há uma cena no filme que faz falta no livro: o Elio pedindo para a mãe dele ir buscá-lo depois da viagem (quem já passou por isso sabe, é como ser engolido por um oceano).
Eu amei o filme por não ter esquecido de nenhum detalhe, mas não se trata de um "amor de verão" (para saber por que, só lendo o livro e seu final).
“Mystery of Love” do Sufjan Stevens é a música mais que perfeita para essa história!
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Opinião com spoilers
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Após fazer o leitor se identificar com a paixão de Elio, depois com seus desejos e impulsos, depois com seu amor correspondido, vem a separação e um lapso de tempo ABSURDAMENTE MELANCÓLICO.
É melancólico porque eles se separam por muito tempo, de forma quase absoluta e a morte de alguns personagens desperta no leitor um sentimento de tristeza: o tempo passou, algumas pessoas morreram e naturalmente o leitor chora.... Eu chorei compulsivamente....
> É legal perceber nas cenas de sexo do filme, que as cenas em que o Elio faz sexo com a Marzia, há sempre um enorme VAZIO ao redor do casal... Já nas cenas em que o Elio faz sexo com Oliver, os corpos preenchem TODA a cena, são maiores que a cena ....
Embora o autor diga em entrevista que "amor" é a melhor palavra para descrever o livro, eu creio que seja um livro sobre o desejo, mais do que sobre o amor. Sobre duas pessoas que não conseguiram ir além do desejo.
Oliver tem um temperamento típico do estereótipo dos norte europeus e norte americanos: é mais frio, esconde mais facilmente o que sente, internaliza aquilo que sente, é mental, reflexivo ...
Elio é o oposto: o estereótipo latino: impulsivo, intenso, inconstante, acaba deixando muito evidente aquilo que ele quer e aquilo que ele deseja sem muita reflexão:
"Encostou meu corpo contra a parede e começou a me beijar, pressionando o quadril no meu, seus braços quase me tirando do chão. Meus olhos estavam fechados, mas percebi que ele parou de me beijar para olhar em volta; pessoas poderiam estar passando. Eu não quis olhar. Ele que se preocupasse com isso...." (pág. 237/238)
Enquanto Elio não nega a paixão e se entrega de corpo e alma ao desejo, Oliver faz o contrário, ele inibe o desejo sempre que possível, internaliza, introjeta os sentimentos, reflete....
Devido ao facto de a narrativa ser em primeira pessoa, o leitor nunca fica sabendo os reais motivos das atitudes de Oliver. O leitor conhece apenas indiretamente o temperamento dele.
Mas não há motivos objetivos fortes (penso eu) para que eles não fiquem juntos.
> A profissão não é motivo: ele é filósofo, na academia e nos círculos intelectuais ninguém está interessado se a pessoa dorme com homens ou mulheres. Relembre as passagens em que os dois estão no círculo de poetas e o narrador/autor deixa claro que ninguém está muito interessado nisso. Se ele fosse advogado, médico, talvez a preocupação fosse válida;
> A diferença de idade também não é um empecilho tão grande quanto o livro tenta mostrar. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que diferenças pequenas de idade entre pessoas mais novas são significativas, mas diferenças de idade entre pessoas mais maduras não são.
Há casais em que, mesmo diferenças de 10 anos ou mais se tornam insignificantes. Os dois se tornam tão parecidos com o passar do tempo que às vez nem é possível dizer quem é o mais velho e quem é o mais novo.
E desde quando diferença de idade é empecilho para alguém nesse mundo?
> Oliver não precisa escolher uma entre as duas coisas: poderia ter se casado enquanto Elio se formava e os dois poderiam voltar a se envolver alguns poucos anos depois (como muitos apaixonados fazem!)...
O mais provável é que Oliver escolha uma vida para o olhar do outro, o olhar do pai (que é intolerante), o olhar da sociedade, em detrimento do próprio desejo.
Afastar-se de alguém com quem se tem tamanha identificação de forma permanente, é no mínimo covardia.
Se há uma identificação no nível em que eles se identificam um com o outro, é natural que haja uma necessidade de manter o outro ao redor de si.
O Oliver acaba sendo um covarde!
Ocorre que a paixão sempre se dá pelo reconhecimento no outro de algo que há em nós mesmos. Desejar o outro é desejar ao mesmo tempo TER o outro e SER o outro:
"Eu queria muito que meus ombros fossem como os de Oliver. assim talvez eu não os desejasse. ... Eu queria ser como ele? Eu queria ser ele? Ou só queria tê-lo? Ou 'ser' e 'ter' são verbos imprecisos no emaranhado do desejo, em que ter o corpo do outro para tocar e ser o outro que desejamos tocar são a mesma coisa, apenas margens opostoas de um rio que passa de nós a ele, volta a nós e a ele novamente, em um ciclo sem fim em que as cavidades do coração, como as armadilhas do desejo, os buracos de minhoca do tempo e as gavetas de fundo falso a que chamamos identidade compartilham uma lógica sedutora, segundo a qual a distância mais curta entre a vida real e aq não vivida, entre nós e o que queremos, é uma escada em caracol projetada com a crueldade impiedosa de M.C. Escher. Quando separam nós dois, Oliver?..." (pág. 81/82)
POR ISSO ELES SE APAIXONAM E SE IDENTIFICAM TANTO UM COM O OUTRO.... eles vivem através do outro o que eles não conseguem sozinhos: Oliver se entregar ao desejo, Elio, saber conduzir o desejo....
É trágico, é muito triste, mas a tragédia se dá por escolha, não por imposição... Oliver escolhe não ir além do desejo e joga fora tudo que eles poderiam ter sido e construído juntos.
Principalmente se a gente lembra que esse desejo não vem apenas de atração física, mas uma identificação em vários níveis, principalmente INTELECTUAL.
Mas Oliver escolhe não viver esse amor (escolhe viver como um ator interpretando uma outra pessoa que ele não é). Como se eles pudessem simplesmente ignorar o desejo que sentem e viver, como Oliver diz, uma vida paralela.
Minha experiência de vida diz que isso não está ao alcance dos seres humanos: não dá para ignorar o desejo como se fosse um interruptor liga e desliga e viver essa vida paralela como se nada tivesse existido (a pessoa fecha a porta e ele sai pela janela...).
Ignorando que existe alguém lá fora no mundo "mais eu do que eu mesmo"....
Essa talvez seja a incoerência mais grave.
Eu particularmente acredito em uma dimensão TRÁGICA desse tipo de amor com essa identificação em vários níveis (Cor Cordium). Nenhuma vida paralela é possível diante de tal nível de identificação.
O que faz o romance ser um tanto incoerente: Gostaria muito de saber como alguém que se lembra dos detalhes de uma experiência há vinte anos, não tem a coragem de viver um amor tão irresistível e intenso como esse. É quase sobrenatural !!!
O facto de o autor, de acordo com entrevistas, originalmente ter tido vontade de "apenas fazer um romance na Norte da Itália devido a férias frustradas" talvez explique algumas incoerências... E qualquer busca por coerências serão sempre frustradas, pois não houve uma preocupação real com isso (o autor justifica o facto de o leitor não ter notícia do que se passa no mundo ao redor dos personagens dizendo que o romance é "interno"...seja lá o que isso signifique...)... .
Estamos falando de um texto marcante, mas não de um Henry James (óbvio), por exemplo, em que várias hipóteses interpretativas podem ser seguidas até a formação de quadros coerentes e igualmente válidos da realidade sugerida no texto. Nesse caso, talvez essas linhas interpretativas se desfaçam no ar em incoerências inconvenientes, o que torna o texto mais plástico, mais gráfico e menos verossímil.
Depois de ler o livro eu fiquei me perguntando afinal por que esse livro é tão triste? Por que ele me toca de forma tão profunda?
Talvez porque eu não entenda e não aceite que depois de um relacionamento tão íntimo os dois se separem totalmente durante tanto tempo (20 anos).... O que significa ser "Cor Cordium" de alguém, se esse alguém vai embora e se casa com outra pessoa? Mesmo que eles não mantivessem um relacionamento íntimo (sexualmente), por que não mantiveram a amizade durante esse tempo todo?
Isso é o que mais incomoda e é o mais difícil de aceitar: nem mesmo a amizade !!!
Você pode achar que tudo isso não passa de confabulações racionais, mas se eu estou errado, qual a diferença entre um amor verdadeiro e um estranho qualquer na rua???
Tudo faz mais sentido agora, Oliver tem medo até de abraçar Elio quando conta a ele que vai se casar, e mesmo mais de uma década depois ele tem medo de tomar uma bebida com Elio quando os dois se reencontram. Oliver não pode manter sequer a amizade porque a memória de tudo ainda persiste e ele tem medo do que ainda sente por Elio. Só 20 anos depois eles conseguem se reencontrar no verão de 2003. Oliver fugiu de seu desejo por Elio por 20 anos.
Oliver afasta Elio de sua vida como a castelã que manda matar o amante depois da primeira noite juntos, para que ele não conte nada a ninguém, mas principalmente para que não volte a desejá-lo mais uma vez....(pág. 167)
Eles têm tudo que a maioria de nós talvez nunca conheça: uma atração física que perdura por todos esses anos, uma atração intelectual, uma identificação em vários níveis.
Mas eles estão próximos de novo, agora.... e vivos.... Como Ulisses, 20 anos depois ele está de volta!
Algum ser humano consegue fugir ao desejo para sempre?
Por esse ponto de vista, o final pode ser mais aberto do que parece... e quem sabe vinte anos depois não seja a hora certa para que os dois possam ir além do desejo um pelo outro! Eu prefiro acreditar que sim, pelo menos para me consolar um pouco do desespero que eu senti ao terminar de ler o livro....
* Não é necessário interpretar a filosofia de Heráclito do livro e do filme de forma tão melancólica achando que, se tudo muda, então tudo chega ao fim e pronto (dando um prazo de validade para todo amor). A filosofia de Heráclito, aliás como bem mostra o filme, diz que algumas coisas para continuarem as mesmas, precisam mudar.
É possível amar alguém para vida inteira? Sim e Não. Sim, porque você não é mais o mesmo e, portanto, o amor pode se renovar sempre. Não porque você não é mais o mesmo e, portanto, o amor acaba.... Não é isso que define se o amor vai persistir ou não. Para mim não se trata de um "amor de verão"....