GioMAS 17/05/2023
Transição do gore ao terror psicológico
Admito que o livro me surpreendeu. Surpreendeu muito!
Não admitir seria, no mínimo, injustiça.
A primeira parte, envolta em um narrativa simplória, com descrição rasa de crenças religiosas, rituais satânicos insossos e manifestações malignas questionáveis, não faz jus ao restante da estória.
Uma grata surpresa!
A autora, apesar de não me agradar no "horror", transita entre diferentes estilos de "terror", equilibrando, assim, o roteiro.
Neste ponto, já alertando para um grande spoiler, arrisco-me a discorrer sobre a alteração no ritmo da leitura.
Pois bem. A estória se desenvolve a partir das relações comezinhas e limitações das personagens, afundadas em crenças religiosas e conservadorismo ultrapassado. Inicialmente, os conflitos são minguados, incapazes de sustentar os trechos de "horror gore" que permeiam a obra, provocando estranhamento.
Elementos como demônios transmutados em cobra, respingos infindáveis de sangue, tripas de gato, uma criança albina sacrificada em um culto demoníaco e um padre morto de forma teratológica, definitivamente, não se encaixam na estória. Isso sem contar com a figura aleatória da cigana e o episódio das crianças mortas na base da mordida.
Não!
Péssimo!
Entendam, não sou desfavorável ao "horror gore". A meu ver, o estilo simplesmente não se adequa aqui, sendo empurrado guela abaixo.
Há exceções, é claro. Nem todo o horror sanguinolento merece ser refutado e extirpado da estória. Para não ser radical, vale exaltar o segmento em que Clara, após ser atacada pelo irmão, caminha em frangalhos, encharcada de sangue, e um prego atravessa um dos seus pés, remetendo às chagas de Cristo - boa sacada.
Na cena subsequente, o ritmo se altera perceptivelmente. O livro ganha novos contornos.
A chegada de Clara ao convento demarca o amadurecimento do enredo.
A partir disso, os desdobramentos inauguram a transição para o "terror" com viés psicólogo, extremamente harmônico com o contexto da obra, capaz de se conectar com as motivações e inseguranças das personagens.
O livro assume aspecto diverso, o medo se torna palpável.
Impossível, com o avançar da segunda parte, não associar o livro com o "O bebê de Rosemary", clássico incontestável na arte de confrontar a misoginia por meio de uma trama diabólica em que a sanidade da mulher é colocada a prova. Afinal, acredito ser este o ponto central do livro, a posição da mulher como refém de um sistema machista, sua subjugação e condicionamento aos papéis socialmente estabelecidos.
Para além disso, o desfecho bem elaborado permite a dialética entre o bem e o mal, atraindo reflexões mais profundas.
A descrição dos fatos é rica, capaz de criar imagens e sensações. As conexões são bem feitas, de forma que algumas passagens ganham real significado apenas quando reveladas por inteiro.
Ainda sobre a estrutura textual, ouso opinar que a alteração da narrativa temporal logo após o encerramento dos encontros entre Clara e Henri é sensacional. Uma opção de escrita muito sagaz. A quebra da linearidade desperta a atenção do leitor que, ainda confuso e aturdido, tenta se localizar na estória.
Como já extrapolei todos os limites da arrogância, permitindo-me julgar uma obra que certamente supera minha capacidade técnica e criativa, não custa dizer que o livro, sobretudo na introdução e na conclusão, é rico em frases de efeito - aqueles enunciad os curtos e bem elaborados que chocam e carregam um significado denso, amplo, provocativo.
Agradeço aos que chegaram até aqui e me despeço pedindo desculpas pela insolência e presunção - que autoridade teria para tecer esse tipo de ponderação, não é mesmo?