Kyanja 03/12/2017
Um livro para se ter e manter na estante: precioso!
Esta obra de Ronaldo Luiz Souza promete e entrega! Nem sempre a atratividade de um livro condiz com o seu conteúdo, mas a capa belíssima (em tons de ocre e diferentes matizes de azul, emulando os elementos da natureza), que apresenta em sua composição três elementos do nosso rico folclore brasileiro — a Iara, a Mula sem Cabeça e o Curupira — e, mais ao fundo, o que seria uma caravela dos incipientes e intrépidos desbravadores de novos mundos do século 16, somada à diagramação atraente, com páginas ilustradas e outras imitando as de um diário muito antigo, escritas à caligrafia com bico de pena, fazem com que, logo nas primeiras páginas, o leitor se veja imerso na atmosfera de um relato mágico e perceba que tem um volume valioso em mãos.
É quase impossível não ser capturado pela narrativa em dois espaços temporais — o aqui e agora, que se passa entre o Rio de Janeiro e as montanhas da bucólica Santos Dumont, cidade de Minas Gerais de onde o autor é oriundo e que homenageia — e o ano de 1573, que marca o início da expedição de Dom Afonso Queiroz, português que deixa a Terra Pátria em direção às terras do novo mundo, que chama inicialmente de Terra de Santa Cruz, onde terá seus primeiros contatos com "a simplicidade, a inocência e a alegria" do "povo belo e inocente" que a habita — os índios brasileiros.
No presente, Jonas, antes de morrer, delega ao amigo Manoel a entrega do "Livro Perdido" ao seu sobrinho Pedro, que criou como filho desde que este ficou órfão, aos sete anos de idade. Desaparecido séculos antes e reencontrado por um maçom que tratou de preservá-lo secretamente, o Livro Perdido é um tesouro histórico de valor inestimável, e passado de geração a geração aos descendentes de Dom Afonso Queiroz — sendo Pedro o seu último herdeiro.
Por meio de um bilhete enigmático deixado por Jonas, Manoel fica sabendo que herdou uma fazenda em Santos Dumont, no estado de Minas Gerais, razão que o faz ir até lá com Pedro e seu filho Caio, ambos com a mesma idade: 14 anos. E é lá que o Livro Perdido é encontrado. Reunidos em volta de uma sugestiva fogueira, começam a leitura do Diário de Dom Afonso e seus descendentes, contendo relatos e reflexões da época — muitas vezes transcrições de contos e lendas ouvidas de pajés de tribos —, ao mesmo tempo que suscitam outras fábulas e lendas recontadas pelos ouvintes, no presente. Enfim, é um catatau de referências a contos do folclore brasileiro, como bem mencionado por Helena Gomes no Prefácio, que o autor costurou "como se contasse, sem pressa, um daqueles causos que se ouve ao redor de uma fogueira, em algum canto desse nosso interior tão rico em lendas". Impossível não mergulhar junto nessa atmosfera envolvente, regada a canjica doce, batata-doce, pinhões e pipoca. Não bastasse, há referências ao Santo Graal, a fonte da vida eterna.
Alguns, entre vários outros aspectos positivos que somente lendo o leitor se aperceberá da riqueza desta narrativa:
=> Valoriza os elementos da terra: as tradições, linguagem, costumes.
=> Faz um resgate de parte da História do Brasil, por meio do Folclore e de uma nova visão da chegada dos portugueses às terras ocupadas pelos índios brasileiros.
=> As mensagens contidas, sem ser meramente moralistas ou politicamente corretas, têm muita força.
=> Percebe-se um trabalho intenso de pesquisa, ou seja, que se trata de um romance fundamentado sobre bases sólidas.
Quando finalizei a leitura, senti-me agraciada por ler algo tão bem narrado, bem amarrado e, acima de tudo, emocionante, com um tema magnífico: a recriação e revitalização de lendas brasileiras. Como pano de fundo, uma história digna de um thriller policial, contrabalanceada pela interessante leitura do Livro Perdido de Dom Afonso — que sobreviveu aos séculos — e dos deliciosos (embora não menos sinistros) causos desfiados em volta da fogueira da pequena cidade de Santos Dumont, galgada a cenário deste belo romance. E Ronaldo Luiz Souza, com modéstia, diz em sua Nota do Autor que "Expedição Vera Cruz é um singelo presente para meu povo". E que presente para sua cidade, para o seu estado e, principalmente, para o nosso Brasil!
Ele não economizou em suas incursões épicas, ao fazer de Expedição Vera Cruz um romance que trata de temas atemporais e universais: a luta das forças do bem contra as forças do mal; a dominação dos fortes sobre os mais fracos, subjugando-os à sua cultura e credos (no caso, os primeiros colonizadores da terra de Santa Cruz e seus habitantes nativos, os indígenas); a busca da fonte da juventude.
Não bastasse, há muita filosofia e reflexões por meio dos relatos de Dom Afonso:
1) Sobre a fragilidade e impotência humana
2) Sobre a prepotência humana
3) Sobre a existência de uma possível fonte da juventude no Novo Mundo:
4) Sobre a diferença entre a natureza dos brancos (que querem dominar novas terras) e dos indígenas:
5) Sobre a existência de uma utópica terra perfeita (tão presente na literatura e até mesmo na poesia, como quando Manuel Bandeira menciona a sua idílica Pasárgada).
O ritmo da narrativa está perfeito, delicioso de se ler, conseguindo manter o leitor cativo à história o tempo todo. Os capítulos no presente estão curtos, com jump cut no momento certo, mantendo o suspense necessário para querer avançar rápido aos seguintes. As fábulas narradas são mais longas, mas igualmente interessantes, pois carregadas de intriga.
Enfim, escrevi demais e acho que ficou bastante claro a quem quiser incursionar pelas páginas de Expedição Vera Cruz que recomendo sem restrição sua leitura a leitores de todas as faixas etárias (mas talvez a partir de 12 anos. Acredito que muitos adolescentes se identificarão com Pedro).
Uma última sugestão para quem aprecia leituras ágeis: pule o Prólogo e já inicie no Capítulo 1. Quando finalizar o Capítulo 3, aí, sim, retorne ao Prólogo, que passará a lhe fazer mais sentido. Mas caso você seja um leitor que não se aborrece com uma imersão ao passado histórico muito distante logo de cara, faça a leitura de maneira convencional, iniciando pelo Prólogo.
Kyanja Lee