MF (Blog Terminei de Ler) 16/04/2023
Uma releitura inteligente da clássica animação
HQ “Os Flintstones”, com roteiro de Mark Russell, arte de Steve Pugn e cores de Chris Chuckry. Trata-se de uma releitura da clássica série de desenho animado, concebida pelos geniais William Hanna e Joseph Barbera, em setembro de 1960. A série original, com suas cinco temporadas, é um marco da televisão, tendo sido o primeiro desenho animado a ser exibido em horário nobre, em formato de série contínua com episódios em torno de 30 minutos, sendo também o mais longevo, até ser superado, décadas depois, por “Os Simpsons”.
Os personagens são conhecidos de praticamente todo mundo: temos o casal Fred e Vilma Frintstone, com sua filha Pedrita e, seu casal de amigos e vizinhos, Barney e Betty Rubble, com seu filho adotivo Bam-Bam. Eles vivem em Bedrock, na Idade da Pedra, numa realidade fantástica, onde humanos convivem com dinossauros e outros animais primitivos, e itens do mundo moderno como eletrodomésticos, veículos, etc., são comicamente adaptados a este universo. Divertidos, os episódios exploram a dinâmica da relação entre as duas famílias, interagindo com esse ambiente criativo, em situações inusitadas.
Essa releitura que li foi aclamada por críticos e público como uma das melhores HQs do ano de 2016 e, o grande mérito, reside no roteiro afiado de Russell. A abordagem apresentada possui uma pegada levemente cômica, mas com um tom propositalmente amargo. Não há covardia ao tratar de temas complexos da vida moderna, ainda que a fonte original seja um desenho infantil.
Um parêntese: na primeira temporada da série original, o público-alvo não era tanto as crianças; é notório, por exemplo, campanhas publicitárias de marcas de cigarro atreladas ao personagem principal Fred Flintstone. O foco na criançada só veio com peso após a criação de Pedrita e Bam-Bam, bem depois da estréia.
Retomando… Poderia se supor que a HQ, num primeiro momento, apenas quisesse retomar essa linha de texto focada no público adulto e que se perdeu com os anos, mas é muito mais que isso. Russell não emula o desenho original que, na presente trama, serve mais como ambientação, contextualização e homenagem. O material aqui é novo, original, e propõe o uso de todo esse material disponível criado por Hanna e Barbera para discutir questões modernas, por vezes, delicadas. E isso é feito com muita competência.
Nas relações profissionais, discussões pertinentes sobre ganância, evidenciada na falta de empatia e exploração de trabalhadores desqualificados, precarizados. A alienação ditada, ora pelo consumismo, ora por líderes religiosos exploradores de fiéis. A falta de ética na Ciência (com coragem, inclusive, para usar/cutucar o mestre Carl Sagan). A impunidade com os crimes da classe mais rica, ou melhor, “avançada”. A Política. A domesticação vista por um olhar mais humanizado (por que certos animais podem ser membros da família e outros apenas objetos de consumo?). Nas relações humanas, o conflito de questões como divórcio e homossexualidade diante do conservadorismo. O bullying estudantil. O horror das guerras, com soldados sendo usados de forma descerebrada e cruel. O dilema Ciência x Religião e como isso pode afetar a vida das pessoas. Tudo isso é abordado, em menor ou maior profundidade, de forma inteligente e crítica, nessa HQ dos Flintstones.
Na arte, temos como criador Steve Pugh que, em seu currículo, traz trabalhos em histórias do Homem-Animal e Monstro do Pântano, personagens complexos e com discussões inteligentes. Talvez aí esteja o motivo de sua escolha para essa releitura. O grande mérito de sua arte está no desenvolvimento das expressões faciais, com sentimentos complexos dos personagens sendo apresentados de maneira bem rica, clara. Por sua vez, o trabalho feito nas cores, por Chris Chuckry, explora tons mais claros, por vezes numa paleta que remete à amarelo, que dialoga bem com o conceito de “algo pré-histórico”. Temos um belo trabalho de arte, portanto, que casa bem com o roteiro.
“Os Flintstones” é, de longe, uma das melhores coisas que li em HQ em um bom tempo. Recomendo fortemente!
site: https://mftermineideler.wordpress.com/2021/08/18/os-flintstones-mark-russell-steve-pugh-e-chris-chuckry/