Jaguatirica 16/02/2024
Muitos espantos
Adélia entrou na minha vida quando eu era adolescente. Muito jovenzinha, há mais de 17 anos atrás. E não me esqueço daquele primeiro espanto que senti ao ler "Bagagem". Adélia observa o encanto do cotidiano e traz as percepções dos espantos como a bela cronista que é. Sinto saudade de você, Adélia, muita. Meu coração chega a apertar ao escrever isso. Eu te amo ;-;
E agora li poemas inéditos, especialmente os que falam de Jonathan, nos livros "O Pelicano" e "A Faca no Peito", os dois últimos contidos em "Toda Poesia". E mais alguns outros poemas inéditos, como os da série "Inconfidências".
Me senti ainda mais próxima de Minas Gerais, esse lugar que se conecta com minha alma...
Fico com a voz interior partida ao tentar dimensionar o que a poesia de Adélia significa para mim e ouso dizer que muitas pessoas não entendem nada de seus textos. Infelizmente. Por isso certa vez numa entrevista ela revelou que gostava de ler em voz alta porque nisso muitas coisas eram reveladas. É preciso ler Adélia feito quem lê uma crônica lúdica, permeada de erotismo, religião e espanto.
Que mulher doce. Que ser humano encantador é Adélia. Ela vive.
- Figurativa
O pai cavando o chão mostrou pra nós,
com o olho da enxada, o bicho bobo,
a cobra de duas cabeças.
Saía dele o cheiro de óleo e graxa,
cheiro-suor de oficina, o brabo cheiro bom.
Nós tínhamos comido a janta quente
de pimenta e fumaça, angu e mostarda.
Pisando a terra que ele desbarrancava aos socavões,
catava tanajuras voando baixo,
na poeira de ouro das cinco horas.
A mãe falou pra mim: ?vai na sua avó buscar polvilho,
vou fritar é uns biscoitos pra nós?.
A voz dela era sem acidez. ?Arreda, arreda?,
o pai falava com amor.
As tanajuras no sol, a beira da linha,
o verde do capim espirrando entre os tijolos
da beirada da casa descascada, a menina embaraçada
com a opressão da alegria, o coração doendo,
como se triste fosse.
- As mortes sucessivas
Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua.
Cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
?Deixa, tá bom assim?.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.
Poesias de "Bagagem" (1976)
- A filha da antiga lei
Deus não me dá sossego. É meu aguilhão.
Morde meu calcanhar como serpente,
faz-se verbo, carne, caco de vidro,
pedra contra a qual sangra minha cabeça.
Eu não tenho descanso neste amor.
Eu não posso dormir sob a luz do seu olho que me fixa.
Quero de novo o ventre de minha mãe,
sua mão espalmada contra o umbigo estufado,
me escondendo de Deus.
Poesia de "Terra de Santa Cruz" (1981)
- Morte Morreu
Quando o ano acinzenta-se em agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já reverdeceram,
da mesma estação levantam-se
nossos queridos
e os passarinhos que ainda vão nascer.
?Ó morte, onde está tua vitória??
Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se,
tomam-se as providências sensatas.
Todos pra janela, espiar as goteiras:
"Chuva choveu, goteira pingou
Pergunta o papudo se o papo molhou".
Pergunta a menina se a vida acabou.
Poesia de "O Pelicano" (1987)