Anna.Beatriz 05/03/2023
Ferida familiar
Quando eu li a sinopse desse livro sabia que seria uma leitura pessoalmente dificil pois toca em feridas vivenciadas por mim, o conflito religião x sexualidade/identidade/expressão foi uma batalha que travei durante um período da minha adolescência. E foi realmente difícil em muitos momentos, ler certas falas e pré-concepções que ecoaram no exterior e - consequentemente - no interior da minha vivência. Mas maior que o desconforto foi o sentimento de acolhimento e entendimento que senti, lendo uma história tão parecida com a minha.
Um trecho que me tocou muito foi quando a Cameron fala sobre a voz da orientadora que ecoa na sua mente toda vez que ela supostamente sente desejos "errados", para mim essa cena resume de maneira brilhante o quão violentas são essas práticas de "terapia de conversão" "cura gay".
"Quanto mais tempo eu passava na Promessa, mais as coisas que eles jogavam em mim, em nós, começavam a grudar [...] eu começava a ouvir a voz de Lydia dizendo: 'Você precisa lutar contra esses impulsos pecaminosos: lute, não é para ser fácil lutar contra o pecado', e eu poderia ignorá-la totalmente, ou até rir para mim mesma pensando no quão idiota ela era, mas ela estava lá, a voz dela, na minha cabeça, onde não existia antes."
Isso para mim é de uma violência estarrecedora, literalmente criar um trauma em uma pessoa, construir uma resposta traumática engatilhada por sensações perfeitamente normais e humanas. E para mim tudo se torna ainda mais grave ao refletir que a Cameron nunca esteve realmente envolvida no processo, ela nunca acreditou na Promessa, sempre teve plena consciência do absurdo que era tudo aquilo. E mesmo assim, isso não foi um impedimento para que eles conseguissem fazer essa marca no subconsciente dela. Pensamentos intrusivos, uma vigilância interna bem característica desses nichos religiosos auto-punitivistas.
[SPOILER E TW:SUICIDIO A PARTIR DAQUI]
Eu considero a Cameron mentalmente resistente a tudo aquilo, ela sempre teve uma certa consciência e pé-firme em quem ela era e mesmo assim foi marcada pela ferida psicológica. Para os que estão realmente envolvidos e comprometidos com aquilo tudo é ainda pior, e vemos isso apenas algumas páginas a frente desse trecho quando ocorre o "incidente" com um aluno chamado Mark.
Mark aparentemente é o discípulo modelo, seguindo todos os treinamentos e ensinamentos a risca, se dedicando e acreditando fielmente naquilo. Mas, como a própria Cameron diz, só porque você acredita com tudo de si em algo não significa que aquilo seja verdade. Mark é levado ao seu limite. Até não aguentar mais. Não há como fugir de si, e tentar fazer isso pode levar a tragédias. Como ocorre com Mark. Uma tentativa de suicidio. Para mim é muito simbólico que isso aconteça justamente com o aluno que aparentava "maior progresso" no "tratamento".
A única coisa que me deixou um pouco decepcionada na história foi a falta de desenvolvimento da personagem Margot e da relação dela com a Cameron, achei muito bonita a troca que elas tiveram naquele momento do jantar e mesmo distante ela foi um modelo para a Cameron. Um desenvolvimento melhor dessa relação, talvez em um prólogo, poderia ter sido interessante.