Matheus Penafiel 09/03/2017
Escrita, lembranças e nós mesmos
Será que a escrita pode operar como uma espécie de afirmação ou revelação de nós mesmo? Ou, esclarecendo a questão, será que à medida em que se escreve um conto, um romance, um ensaio, revelo ou afirmo algo de mim? E, se sim, o revelo pelo que escrevo explicitamente ou pelo que fica subentendido nas entrelinhas? Revelo pelo que digo ou pelo que calo?
Essas foram algumas das perguntas que a leitura de A louca da casa, de Rosa Montero, me despertou. Começou, não por acaso, no primeiro capítulo, com a seguinte frase: “De maneira que nós inventamos nossas lembranças, o que é o mesmo que dizer que inventamos a nós mesmos, porque nossa identidade reside na memória, no relato de nossa biografia”. Esse trecho encobre o que é, ao menos para mim, uma questão fulcral ainda por ser devidamente tratada pela filosofia, a saber, se constituímos nosso eu pelo que tentamos aparentar sermos ou se pelo que escapa pelas fissuras de uma máscara de cera. Nesse livro, um compilado de ensaios sobre literatura, memória e imaginação, Rosa Montero parece querer se caracterizar como uma dos escritores que admira, os quais padeceram de uma “imperiosa urgência de escrever sobre a escrita”. Como nos diz a própria autora, esse livro se pretende um “ensaio sobre o ofício de escrever”.
Nessa fome de se constituir como um desses gloriosos romancistas, algumas coisas escapam pelas fissuras, porém. Algumas delas são os exagerados adjetivos usados por Rosa Montero, como, por exemplo, “desdém olímpico” ou “drogado feito um piolho”. Essas são expressões que pretendem aumentar a proporção daquilo que se diz, mas de forma sumária. Não me parecem fazer sentido, porém. O que é estar drogado como um piolho? Apesar de não serem a tônica da obra, pois a maioria das vezes em que Rosa Montero predica algo dessa forma, o faz bem, a autora é reincidente nos exageros. Inclusive na tentativa algo desesperada de atrair seu leitor o mais rápido possível para o livro, escrevendo coisas como “Meu pai foi embora sem dizer nenhuma palavra mais (…) em direção aos 25 anos de vida que ainda lhe restavam”, “e depois [Pilar] desligou e desapareceu dessa história a caminho de sua morte prematura 23 anos depois”, “Fernando desapareceu discretamente, rumo à morte que o esperava vinte anos mais tarde”. Essas são frases disparadas no ínfimo intervalo de uma página, e pretendem atenuar a importância do que narra. Ainda que se possa justificar dizendo que o capítulo tratava da morte, podemos questionar o porquê disso, desse uso retórico da morte.
Essas tentativas precoces de impacto podem ser observadas especialmente nos dois primeiros capítulos, dos quais alguns dos parágrafos podem ser tratados quase como aforismos. São encerrados com frases de impacto, como se suas expressões transcendessem a própria frase. Os parágrafos possuem sentidos independentes e autossuficientes, o que torna a articulação entre eles vaga. Essa brevidade com que pretende sentenciar suas opiniões também incomoda na menção que faz aos livros de grandes escritores. “A sangue frio, o maravilhoso livro de Truman Capote”, “Herman Melville, o autor do maravilhoso Moby Dick”, “seu [de Capote] Bonequinha de luxo me parece perfeito”, “The Class (A classe), um romance volumosíssimo e, a meu ver, também horroroso” são algumas das caracterizações feitas pela autora. Porém, essas breves menções, sobre as quais não se aprofunda, transparece mais a grande distância jornalística que ela mantém dos livros do que a aproximação de leitora apaixonada. Isto é, se não for para se aprofundar no que diz a respeito de um livro, por que faz questão de julgá-lo? Para mostrar que possui opiniões sobre? Rosa Montero desenvolve satisfatoriamente suas ideias apenas quando trata de algumas poucas obras, como A sangue frio e As mil e uma noites. Noutros casos os menciona apenas para citar uma passagem da obra, como ocorre de maneira imprudente ao citar a “celebérrima” frase do Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein, “O que não se pode falar, é preciso silenciar”. Não tenho certeza de que a autora saiba o que Wittgenstein pretende dizer com esse aforismo, e tampouco irei explicar porque também não tenho certeza de que o entendo. A diferença, nesse caso, é a prudência de calar sobre o que não se pode falar, ainda que não sejam a esses casos de ignorância que se refere o filósofo.
Apesar dessas observações, espero que tais críticas não sejam suficientes para desestimular o leitor a ler A louca da casa. Explico o porquê: há, de fato, uma certa distância quando Rosa Montero fala desde a posição de leitura. Não é o caso, porém, quando fala de suas experiências enquanto escritora. A autora é capaz de nos surpreender com algumas reflexões sobre a arte da escrita, como quando, ao responder se existe literatura de mulheres, diz que “quando uma mulher escreve um romance protagonizado por uma mulher, todo mundo considera que está falando das mulheres; mas se um homem escreve um romance protagonizado por um homem, todo mundo considera que está falando do gênero humano”. Ou ainda, quando fala da existência de musos ou musas, nos diz que está convencida “de que os musos mais eficientes não são os verdadeiros amados, e sim as ilusões passionais”.
Curiosamente, a escritora Carol Bensimon considera os pontos fracos do livro os que eu considero pontos fortes: dizem respeito a uma mesma história contada em três versões diferentes pela autora. O que Bensimon considera um truque sem sentido, eu credito como uma prova performática daquilo que defende Rosa Montero. Por um lado, que a imaginação concorra com a memória para se apoderar do território cerebral, por outro lado, que os romancistas vivem muitas vidas. Provavelmente essa discordância literária diga mais a nosso respeito enquanto leitores do que propriamente à obra de Rosa Montero. O que deixa o julgamento de A louca da casa em aberto, e o livro continuamente por ser explorados por novos leitores.
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