Carol Nery 24/09/2018Sci-fi que me gerou empatia“- Temos um ditado no lugar de onde eu venho: poder não pede permissão nem perdão”.
A resenha hoje é sobre o romance de estreia da autora americana Ann Leckie, lançado nos Estados Unidos em 2013, e ganhador de diversos prêmios da literatura fantástica, como o Hugo e o Nebula. Por meio de sua inventividade e ousadia, Justiça Ancilar também foi indicado para vários outros prêmios da ficção científica. Mas, antes de chegarmos nessa história, gostaria de explicar um subgênero da ficção científica de forma muito sucinta, o qual essa obra se enquadra.
Justiça Ancilar é uma Space Opera, ou seja, uma aventura espacial fantástica. Fãs de sci-fi costumam considerar esse subgênero um dos mais empolgantes, tanto quando se trata de literatura, quanto de cinema ou televisão. Em 1941, quando o termo foi cunhado ficou conhecido de forma pejorativa, hoje, não mais. Geralmente os protagonistas são quase que invencíveis, existem sempre grandes naves e frotas envolvidas, batalhas espaciais épicas, relacionamento (físico e/ou amoroso) entre alienígenas, e esse frenesi todo. As aventuras e personagens continuam sendo marcantes, e a fama do estilo além de melhorar muito no decorrer dos anos, cresceu vertiginosamente.
E tendo noção desse clima é que iremos conhecer mais sobre o primeiro livro da Trilogia Império Radch que se passa em um remoto planeta gelado, nessa história com elementos de ficção científica e enredo de um bom thriller. Breq (ou Um Esk) é nossa narradora e protagonista, é um acessório singular, uma ancilar, e ela está prestes a concluir seus planos de vingança. Era parte do império que domina a galáxia – ela foi conhecida como a nave Justiça de Toren (uma porta-tropas gigantesca com uma única inteligência artificial que habitava e controlava o corpo de milhares de soldados). Através de um ato de traição, tudo o que Breq conhecia foi devastado. Agora só lhe resta um único e frágil organismo humano para enfrentar o império.
“As radchaaid não ligam muito para gênero, e a língua que falam – minha própria primeira língua – não marca gênero de forma nenhuma.”
Através uma nota da editora logo no início do livro, somos informados a respeito da forma como os gêneros para definição de personagem masculino ou feminino serão utilizados ao longo da narrativa, e através dessa informação se pode perceber como a linguagem foi usada de forma complexa, o que veio a enriquecer mais ainda esta obra. O idioma que Breq utiliza, como membro do Império Radch, não possui pronomes com gênero definido. A escolha da autora foi escrever sua história flexionando as palavras para o gênero feminino, mas essa forma de escrita ficou mais evidente após a tradução para o português. Acabamos tendo a impressão das personagens sendo como uma massa homogênea, e desprovida de traços definido-res. Se a autora não definir e anunciar o gênero das personagens, o leitor não tem como o saber.
O tradutor em diversas situações utiliza o “ela”, mas isso não significa a especificação do gênero da personagem, mas a forma como seria dito em radchaai. Apesar de que quando utilizando outras línguas no decorrer da narração, poderá ter-se referência a personagens com pronomes masculinos. Parece complicado, mas a gente se acostuma...
Após essas pontuações, vamos conhecer melhor Justiça de Toren, uma Nave do Império Radch que possui sua consciência dividida em várias ancilares, que por definição, seria uma Inteligência Artificial instalada em corpos humanos. Ao passar das páginas descobrimos que a Nave desapareceu há vários anos atrás, e os motivos serão revelados aos poucos, uma vez que os capítulos (até mais da metade do livro) são divididos entre tempo presente e passado, sendo o tempo passado 19 anos antes da data atual. E o único corpo restante da Justiça de Toren é de nossa narradora Breq, que chega até nós viajando por paisagens inóspitas e muito hostis.
Logo no primeiro parágrafo Breq faz o resgate de Seivarden Vendaai, uma antiga oficial da Nave, uma jovem tenente que foi promovida. Todos pensavam que ela havia sido morta há mais de mil anos, mas Breq a reconheceu em meio à desolação de um clima de 15° C e grandes quantidades de machucados e hematomas. Embora Seivarden nunca tenha sido uma das oficiais preferidas de Breq, a ancilar ainda assim cuida dela e a leva consigo. O motivo de Breq estar nessa peregrinação e o que está procurando, logo será desvendado.
Realmente são muitas informações que recebemos a todo instante, e invariavelmente é necessário retornar a algum parágrafo para melhor compreender o que está acontecendo. O universo criado pela autora é muito bem desenvolvido e abundante em segmentos. Caso ache necessário, faça anotações ou cole post-it para conseguir demarcar os acontecimentos, as nomenclaturas criativas e desconhecidas, bem como diferenciar as demais personagens e suas referidas funções dentro do Império.
“- Se você está disposta a fazer isso por alguém que odeia, o que faria por alguém que ama?”
Para que possamos entender e gostar do estilo de escrita de Leckie, precisamos perceber e tentar visualizar os aspectos religiosos, sociais e políticos do Império Radch; um povo que se divide de forma parecida a de um sistema de castas. O poder é dividido conforme as casas, e os fatores hereditários tem peso nessa hierarquia. Mas, existe um poder maior ao qual o Império obedece e teme.
Anaander Mianaai possui muitos, mas muitos corpos mesmo – compartilhados por uma mesma consciência, e é a líder máxima do Império Rach. Nos capítulos que ficamos conhecendo os acontecimentos do passado, percebemos que Anaander Miannai tem uma situação problemática com a tenente Awn – essa, uma das oficiais de preferência da Nave. E no desenrolar da relação entre Miannai, Awn e a Nave é que a história não mais se divide, e é narrada como tempo presente, onde Breq continua sua busca por justiça, ao lado de Seivarden.
Quando descobrimos o real plano de Um Esk – que tem a ver com uma conspiração intergaláctica – ficamos atônitos e com a certeza de que será uma missão impossível. Breq tenciona matar a senhora do Radch, mas como a líder possuí inúmeros corpos, não interessa quando um deles é assassinado. E é esse desdobrar de acontecimentos que faz a terceira parte do livro, a final, ser tão empolgante e frenética. Conseguimos criar expectativas com o plano de Breq e nos envolvemos com a esperança de uma luta bem sucedida. Mas isso se dá por termos vivenciado com a Um Esk os acontecimentos do passado, e que justificam a vingança do futuro.
Se você gosta de ficção científica, protagonismo e inovação, o universo que Leckie criou irá atender seus critérios. A ideia de ancilares, que nada mais é do que corpos humanos mortos modificados para receber uma inteligência artificial e ser conectados à Nave, fez minha mente explodir! É uma leitura que exige dedicação e concentração, mas que vale a pena quando você consegue enxergar quão rica e elaborada é a história.
“Pensamentos que levam à ação podem ser perigosos. Pensamentos que não levam à ação significam menos que nada.”
A edição da editora Aleph é em brochura, com 384 páginas, edição com orelhas, papel pólen e o tamanho da fonte é muito confortável, e com uma formatação simples e sem muito detalhes. A ilustração da capa nos remete o clima da história, auxiliando na criação imaginativa do leitor. A revisão está muito boa, o trabalho do tradutor deve ter sido muito trabalhoso e divertido, mas também está ótimo. A editora também disponibilizou um infográfico que destrincha os elementos contidos nessa trilogia, e que auxiliam muito na compreensão dessa ficção científica: https://medium.com/@editoraaleph/infográfico-justiça-ancilar-1767a163735d
Eu atribui a nota de 4 estrelas em 5, e aguardo ansiosamente a publicação dos próximos livros, que já saíram lá no exterior. Uma das coisas que me fez me envolver com o enredo proposto por Leckie foi a ideia inovadora da autora de dar identidade, personalidade, e independência a uma ancilar dotada de Inteligência Artificial. Foi a forma de construirmos um vínculo com a protagonista, onde os anseios da mesma tornam-se desejáveis a nós leitores. Após as primeiras 100 páginas o ritmo da leitura fica intenso, e me apeguei à Breq e sua causa. Gostei muito da construção de tudo que pode vir a ser a Trilogia Império Radch, e super recomendo àqueles que curtem Space Opera.
“- Engraçado – disse a Misericórdia de Kalr. – Você é o que eu perdi, e eu sou o que você perdeu.”
Ann Leckie é uma autora e editora de ficção científica e fantasia. Estreou com o romance Justiça Ancilar, vencedor de diversos prêmios na categoria sci-fi. Nasceu dia 02 de março de 1966 em Ohio, Estados unidos. Tem diversos contos publicados, outro romance além da Trilogia Império Radch, e muitos prêmios conquistados.
site:
http://www.coisasdemineira.com/2018/09/resenha-justica-ancilar-ann-leckie.html?showComment=1537461484229#c5056440031908658187